O
SIMBOLISMO DA RODA
Capítulo IV
A TRADIÇÃO HERMÉTICA

A tradição hermética deriva de seu nome, nada menos que de Hermes, deus grego, o Mercúrio romano, e sobretudo do mítico Hermes Trismegisto, todos eles instrutores e educadores dos homens, mensageiros dos deuses, personagem que aparece em quase todas as tradições sob distintas formas, como emissário ou intermediário entre céu e terra, sempre vinculado com o que voa, por isso costuma-se representá-lo com atributos alados. Deste modo se o relaciona com audições, recepções e transmissões de mensagens. Quer dizer, com doutrina54, ciência, sabedoria e revelação. A palavra tradição deve significar, de certa forma, o mesmo que o anterior,55 por isso a expressão "tradição hermética" possa parecer uma redundância, se não se quisesse destacar, pelo aditamento desta última palavra, uma nítida origem revelada -como também assinalar uma circunstância histórico-cultural referente, de modo específico, ao ocidente e às origens de sua civilização. Por outra parte, o termo que nos ocupa é também claro assim que indica uma via de conhecimento determinada, relacionada com os mistérios menores, chamados também mundo ou plano intermediário, no caminho iniciático, expressando, além disso, a ideia da escuridão e silêncio, inerentes a este caminho, referindo-se igualmente a sua natureza misteriosa.

A tradição hermética é, pois, uma forma da tradição unânime, universal e primitiva -adequada à roupagem histórica e à mentalidade de certos povos e certos seres- que se manifestou aqui e ali, conformando e organizando a cultura e a civilização. O deus Hermes é solidário com o Toth egípcio,56 posto que, como ele, representa sabedoria e interpretação hermenêutica, e virtudes de profecia, atribuídas também a Enoch e a Elias artista -patrono da alquimia-, arrebatados ambos ao céu em um carro de fogo (veículo francamente solar) e dos quais se diz que não estão mortos, mas sim vivos, como outros personagens análogos de distintas tradições, dos quais se aguarda sua segunda aparição ao fim dos tempos, assim como os cristãos esperam a parusia do mestre Jesus, rei dos judeus, Cristo Rei, que encarna em forma humana, para nos revelar a verdadeira vida: transmissão que o converte em salvador e redentor. Historicamente não é muito difícil de advertir que os mitos e símbolos esotéricos egípcios, judeus, greco-romanos, cristãos, árabes e mediterrâneos em geral conformam um conjunto que se pode relacionar diretamente com os povos ocidentais; e que esta influência espiritual, embora não tome formas religiosas, é indiscutivelmente válida pela pureza de sua origem, e pelo desenvolvimento concatenado de transmissão, protagonizado por sábios, profetas, guerreiros e "artistas". Isto não exclui que o conjunto de ensinos ao que nos referimos seja perfeitamente solidário com outros de distintas épocas e latitudes, e até idêntico a eles, além dos disfarces formais. No caso particular que nos ocupa -o do emissário divino que reúne em si a possibilidade unificada do que repta e do que voa, da terra e do ar, que devem ser separados para complementar-se adequadamente através da paixão e do amor-, este fato é claro e probatório da unidade arquetípica de todas as tradições, já que esta oposição-conjunção acha-se manifestada em toda parte. O que nos interessa agora é destacar que as ciências e artes que foram chamadas de "tradição hermética" têm uma origem comum, que se manifestam historicamente ao longo da vida do Ocidente, e que se expressam por intermédio de uma série de disciplinas e trabalhos, mitos e símbolos, que constituem um código coerente, suscetível de ser transposto a todos os códigos e sistemas tradicionais, pois na verdade elas expressam e se propõem o mesmo: revelar um conhecimento oculto, permitindo desta maneira a conquista do verdadeiro estado humano, o ser original, que todo homem perdeu pela queda, e que o coloca em uma situação infra-humana com respeito a si mesmo, motivo pelo que tem que restaurar seu verdadeiro Eu, que se acha oculto em seu interior, tão somente vivo em forma potencial, e que deve atualizar, pela memória de si e a lembrança do arquétipo original, com fé e amor, graças à doutrina tradicional, conhecida neste caso com o nome de hermetismo. Que lhe permite RE-nascer57 ao estado autenticamente humano, frente ao qual os estados inferiores 58 aparecem como sonhos, ou ensaios, ou projetos ilusórios, ou mera tolice, por não dizer estúpida vaidade.

Estas disciplinas, ou veículos, levam o aprendiz através do mundo intermediário e o colocam defronte ao tabernáculo, no coração do templo, no eixo, que igualmente comunica com a cripta ou caverna, o país subterrâneo dos mortos, ou melhor, no interior do sacrário, de onde poderá iniciar sua ascensão vertical, para a cúpula ou a sumidade, que simbolizam a saída do templo ou do corpo, o supracósmico ou o supra-humano. Faz tempo que recebeu as águas batismais. Inclusive já se liberou das provas do labirinto das formações. Convertido agora, pela comunhão solar, no Rei do Mundo, o aspirante poderá então ser absorvido inteiramente na função sacerdotal e escapar da cosmogonia, que lhe revelou, utilizando sua identificação com ela como um suporte vivo de transmutação inefável. Ofício de guerreiros e cavaleiros, também o é de sábios e artistas, quer dizer, de astrólogos e alquimistas, e inclui a mestria no conhecimento. Não pouco é este conhecimento, no caso da astrologia e da alquimia, disciplinas que conformam o hermetismo ou a tradição hermética -os mistérios menores da Antiguidade-, pois se referem respectivamente ao conhecimento do céu e da terra, constituindo ambas o saber da cosmogonia completa, a ciência dos ciclos e a ciência das transmutações: a "arquitetura" experimentada em forma direta.59

Historicamente se pode detectar em numerosos pontos da cultura ocidental a aparição de correntes de ideias, crenças, sistemas e pontos de vista herméticos, quer dizer, esotéricos, dentro do exoterismo de tal ou qual período determinado. Se nos ativermos à cronologia cristã, estes acontecimentos ideológicos aparecem não só em determinados momentos históricos -conformando períodos inteiros, como na Idade Média europeia-, mas também constituem os antecedentes de certos personagens e fatos científicos, filosóficos, históricos, literários, e até a origem de todo um código, como no caso da astronomia e da matemática. Convém, pois, situar-se em algum segmento mais ou menos claro e computado do devir temporal e avaliar uma amostragem de acontecimentos culturais-históricos, a fim de ilustrar esta exposição, que não pretende ser um estudo histórico ou sociológico.

Podemos nos localizar então na Alexandria do século III de nossa era e observar a multidão de ideias, concepções e personagens, tradições e culturas -inclusive a hindu e a budista-, que confluem ali, constituindo uma verdadeira encruzilhada de caminhos, um ponto de concentração de uma série de energias análogas, vindas de várias e diferentes direções, as quais têm que conformar posteriormente as diversas facetas de nossa cultura. Naquelas datas e lugar podemos encontrar o cristianismo dos primeiros padres convivendo com o gnosticismo, ambos de origem oriental. [Podemos encontrar] o pensamento grego, em particular o neoplatonismo -que surge como uma constante ao longo da história do Ocidente- misturado com a tradição hebraica, e com os fragmentos de civilizações como a caldaica, a egípcia, as do Irã, e outras, algumas delas perdidas ou esquecidas por nós. Não tentaremos, tampouco, neste ensaio, dar uma visão mais ou menos clara destes fatos, nem sequer brindar com um panorama. Remetemos o leitor à numerosa bibliografia a respeito, obra de autênticos especialistas. Desde nosso ponto de vista, destacamos estas coordenadas espaço-temporais, como lugar de reunião e posterior expansão das ideias da Tradição Unânime, da filosofia perene e universal, da doutrina, que chegaram a nós com o nome de tradição hermética. É também muito interessante sublinhar que estas ideias, através dos séculos, mantiveram-se vivas até nossos dias. E não só sobreviveram simplesmente, mas também constituíram, e ainda constituem, a trama invisível de certos acontecimentos revivificadores da história do homem ocidental, sem a qual esta história, e este homem, teriam desaparecido já há muito tempo.

O andaime de ideias ao qual estamos nos referindo, há de permanecer mais ou menos incólume e ser considerado como a sabedoria sempre oculta e esquiva, mas presente na vida pública da cidade e do povo -como uma herança cultural imperecível-, até aproximadamente o século XVII. E seguirá constituindo a medula cultural da Europa. Mas, a partir de então os valores mais profundos, postos em crise pelo mal chamado "humanismo", degradar-se-ão até a negação de toda possibilidade de tradição e doutrina, o desconhecimento de qualquer esoterismo, e a ignorância total referente ao que se entende por iniciação.60 Passou-se, então, à profanação do sagrado e à dessacralização da vida e da realidade, por isso tudo começa a ser empírico e insignificante.61

Não que não tenha ocorrido anteriormente -ou, inversamente, que na escuridão atual não exista a luz-, mas estamos nos referindo agora ao tom particular de um determinado ciclo. Este ciclo que tratamos, é, em termos gerais, o da cultura chamada ocidental. E está, como todo ciclo, encadeado a outro, que a sua vez o está a um terceiro, e assim sucessivamente. Mas isto não é tudo: cada ciclo é um fragmento de outro maior e cada uma de suas partes pode ser um ciclo completo em si, com seus sistemas de subciclos, e deste modo indefinidamente. Tudo são ciclos dentro de ciclos, e a história exemplifica -de maneira alarmante às vezes- esta complexidade tão sutil como emaranhada. Mas a doutrina aparece em cada um deles, de uma ou outra maneira, por momentos brilhando intensamente, em outros declinando, ou escondida na escuridão, no coração de uns poucos. A tradição hermética esteve presente no Ocidente desde suas origens históricas e ideológicas, manifestando-se através de distintos grupos, pessoas ou instituições. Não nos referimos exclusivamente à filosofia grega, Pitágoras e Platão,62 Plotino e Porfírio, Proclo, nem à soteriologia dos romanos (Virgílio, Apuleio), tampouco aos verdadeiros gnósticos, nem aos primeiros pais da Igreja, mas sim queremos destacar o enorme amontoado de hermetistas ocidentais cristãos e esoteristas judeus e islâmicos, que tanta influência tiveram sobre os construtores da Idade Média e entre alquimistas, rosa-cruzes e algumas ordens cavalheirescas de diferentes tipos, das quais deriva a Maçonaria, organização iniciática nascida historicamente no século XVIII, embora de origens muito mais antigas -inclusive míticas-, que felizmente permaneceu até a data, embora desgraçadamente seja quase desconhecida, até para os próprios integrantes de seus quadros, em razão da degradação cultural cíclica, que se dá em todas as ordens e lugares, cada vez mais progressiva e veloz, e que tem feito à verdade tão mais misteriosa e secreta, como se se tivesse retirado realmente ao interior de si mesma e se tivesse que procurá-la, ou tirarmo-nos os véus psicológicos que nos ocultam isso de nós mesmos. Entretanto, a Maçonaria segue outorgando a iniciação em suas lojas maçônicas e esta é perfeitamente válida, dado que se trata da transmissão regular de uma influência espiritual. São muitas as lojas maçônicas que na Europa e América estão trabalhando muito seriamente e são muitos os adeptos que revitalizam os valores originários.

Com respeito ao ocidente moderno, podemos aceitar que as tradições religiosas que atualmente o conformam e que estão presentes em maior grau em sua cultura, são a judaica, a cristã e a islâmica, ou seja, denominadas as "do Livro". O judaísmo tem em sua religião sua própria tradição e certos rabinos se dedicam à cabala, às relações entre letras, palavras e números, ao estudo, ao rito e à meditação. Quanto ao Islã, sua parte exotérica e seu esoterismo estão muito pouco diferenciados. Religião do deserto, é vivenciada de forma individual, e suas práticas, totalmente interiores, não precisam de imagens e nem de ritos complicados. O sufismo, é sabido, é a expressão do esoterismo islâmico. Quanto ao cristianismo, e mais especificamente ao catolicismo, diremos que muitos de seus membros pertenceram em diferentes épocas a ordens herméticas de esoterismo cristão. Papas, arcebispos, bispos, cardeais, singelos abades, ou párocos, ou humildes monges, encarnaram o conhecimento. E não só entre os doutores e os sábios da Igreja, mas também entre seu Santos e seus mártires, começando pelos apóstolos. Só nos bastará mencionar alguns nomes, dentro do esoterismo cristão, que provam a continuidade e a importância deste, não só quanto à Igreja como instituição e ao catolicismo como religião se refere, senão assim que representa historicamente as raízes mesmas do pensamento ocidental. Assim, por exemplo, deveríamos começar por Orígenes e os primeiros pais da Igreja, para continuar com o cristianismo ortodoxo do Oriente,63 falar do monaquismo na Irlanda, de São Bento e a constituição das diversas ordens de monges religiosos, para passar a São Bernardo, ao Císter e à cavalaria, mencionando nada menos que a Dionísio Areopagita no século V, e também a Santo Agostinho, para chegar a Alberto Magno, São Tomás de Aquino, e ao Mestre Eckhart. Neste ponto, é importante a aparição de um ambiente iniciático, o dos místicos de Munique, que foi para o Eckhart o mesmo que a ordem dos Fedeli d'Amore para Dante. Do mesmo modo, deveríamos nos recordar dos artistas medievais (Nicolas Flamel, Basílio Valentino, Bernardo Trevisano) e do hermetismo cabalístico cristão: Raimundo Llull, Nicolas de Cusa, Marsílio Ficino e Pico de la Mirandola. Também de Jacob Boehme, Cornelio Agripa, Francesco Zorzi; e dos magos elisabetanos, até Robert Fludd e os mencionados rosa-cruzes.

Desta maneira poderíamos percorrer os ciclos das histórias particulares -inscritos em outros mais amplos- e estabelecer as legítimas vinculações e as relações insuspeitadas de todo tipo, entre diversos acontecimentos sem conexão aparente, que nos fariam ver e conhecer outra história. E esse é o valor que na verdade tem a história dos personagens e dos povos, o de poder ser tomada como um código de sinais significativos ou significantes, como um discurso salpicado aqui e acolá de detalhes reveladores. Uma linguagem criptográfica, que poderia nos dar uma espécie de espectro ou panorama -de enquadramento no tempo-, no qual lêssemos como em um livro aberto, o livro da vida, cuja leitura tem que nos levar à imortalidade através do conhecimento dos ciclos universais, análogos aos ciclos dos homens.

O conhecimento de "outro tempo" na verdade está incluído na ordenação ou iniciação hermética, que supõe a vivência direta de uma cosmogonia e a iniciação em seus mistérios. E só o quis trazer aqui para mostrar o influxo espiritual da tradição hermética, sob distintas formas, até nossos dias, no Ocidente. Inclusive o cristianismo oferece uma iniciação virtual por intermédio do sacramento do batismo, ou regeneração pelas águas, motivo pelo qual as pessoas interessadas neste tipo de temas aos quais estamos nos referindo, não têm necessidade de ir a tradições estranhas a sua, embora de maneira nenhuma devam desprezá-las, face à dificuldade que, algumas vezes, se tem de se identificar com elas. 64 A obra hermética se produz na interioridade do athanor (analogicamente, do templo do homem). O certo é que esta tradição propõe o conhecimento mediante o estudo da cosmogonia. Estudar as leis cosmogônicas não supõe a erudição literal, ou o cômputo de detalhes banais, que para estas disciplinas são coisas secundárias, se não às vezes entorpecedoras. Conhecer a cosmogonia supõe ser uno com ela. Estar vivo ou ter nascido no verdadeiro estado humano. Este fato assombroso inclui uma perda e um achado de identidade, uma morte e uma ressurreição, que se realizam inumeráveis vezes em vários anos, no athanor do alquimista, sua interioridade. E lhe dá também a matéria com o que seguir trabalhando neste processo alquímico, chamado também de iniciação no caminho do conhecimento e da vida real.

O alquimista e o astrólogo trabalham sozinhos. Assim se os pode ver em numerosas gravuras da iconografia hermética. Ou estudando, meditando ou orando, quando não absortos na contemplação de seus achados.65 A obra hermética se produz na interioridade do athanor (analogicamente, do templo do homem). O certo é que esta tradição propõe o conhecimento mediante o estudo da cosmogonia. Estudar as leis cosmogônicas não supõe a erudição literal, ou o cômputo de detalhes banais, que para estas disciplinas são coisas secundárias, se não às vezes entorpecedoras. Conhecer a cosmogonia supõe ser uno com ela. Estar vivo ou ter nascido no verdadeiro estado humano. Este fato assombroso inclui uma perda e um achado de identidade, uma morte e uma ressurreição, que se realizam inumeráveis vezes em vários anos, no athanor do alquimista, sua interioridade. E lhe dá também a matéria com o que seguir trabalhando neste processo alquímico, chamado também de iniciação no caminho do conhecimento e da vida real.

Conhecer uma cosmogonia significa viver a mandala tridimensional do cosmos. Compreender a revelação de um universo e suas leis, absolutamente diferente do que foi ensinado. Onde os valores são tão outros, que unicamente podem ser recebidos por meio de uma total conversão psicológica. Este processo necessita de uma ordem e de um trabalho. Não só tem enormes riscos de separação de muitos tipos (os quais, geralmente, são parte do processo), mas sim pode resultar quase impossível de realizar, por indefinidos motivos. Diz-se que é difícil, mas não impossível. No caminho podem ficar, entre outras coisas, a saúde, a fama e a honra, quer dizer, toda segurança. Mas a recompensa é a identidade, o conhecimento, o ser. O aprendiz de alquimista está disposto à realização espiritual, que inclui o conhecimento vivo das leis do cosmos, em definitivo, o conhecimento de si mesmo, e da realidade, da ordem, da vida. Receberá, pois, o que desejou, sempre que seu trabalho for paciente e sacrificado66 e passe pelas provas dos heróis mitológicos. Deve levar seu trabalho hermético a todo nível em sua vida e sua cotidianidade, pois se trata da recuperação da luz -a lucidez-, utilizando o emotivo fogo do sangue. O estudo das disciplinas herméticas e dos textos mágicos, alternar-se-á com a constante meditação e o trabalho interno, sagrado, e se surpreenderá então de ver-se cada vez mais estrangeiro no mundo das causas e efeitos.67 Esse espaço interno poderá albergar as estruturas com as quais construir um novo cosmos, ou melhor, descobri-las-á em si mesmo e manifestando-se em qualquer parte. Poderá então viver de manhã até a noite -e em suas próprias horas de repouso- um novo mundo, cada vez mais assombroso, cuja característica é a riqueza e também o esplendor. Sendo tanto o que tem nas mãos, tem que tomar consciência então de sua responsabilidade com respeito a si, e advertir que não foi por seu mérito, nem um descobrimento próprio, o obtido, senão que simplesmente isso é assim, e que, além disso, não lhe pertence. E, mais ainda, reconhecerá que sua personalidade, tal qual imaginava, não existe. Deve então procurar dirigir-se com as estratégias próprias das artes marciais e equilibrar constantemente o percurso de seu caminho, o manejo de seu veículo. Esta arte requer uma manipulação delicada e é provável que se aprenda à força; ao menos se trata de uma ciência de fortes contrastes. Mas, perseverando até o fim, conseguirá viver em uma mandala viva, espelho do cosmos, onde toda coisa tem significado, nas tensões e matizes próprios da harmonia e da ordem do criado, e de seu sustento invisível e arquetípico. Terá conhecido a cosmogonia e, assim, o batismo lunar de João, de água (da ciência do esquadro), e terá recebido o batismo solar de Jesus, de fogo (da ciência do compasso), e quando tiver culminado este último processo, então se poderá dizer que compreendeu a essência da terra e do céu, o que é simultâneo com sua chegada ao centro e equivale a estar já preparado para começar sua ascensão vertical, pois finalizou com os mistérios menores.

Trata-se, pois, de um caminho mágico, onde os próprios veículos são reveladores.68 E quando nos referimos ao termo magia, não estamos falando de nada de menor grau, onde os sempre mesquinhos interesses pessoais estão em jogo e a mera individualização fenomênica é valorizada de acordo a patrões modernos e materializados. Referimo-nos a algo muitíssimo mais sutil e poderoso: a autêntica estrutura invisível do espaço e do tempo, intuída diretamente, que não é já algo exterior ou alheio a nós mesmos e ao todo. Entre outras razões, diz-se que o pensamento analógico é mágico, porque as associações e correspondências que ele provoca nos ensinam a pensar, fazem-nos saber do que se trata a obscura lembrança do conhecimento. E nos transforma em verdadeiros seres inteligentes, ao nos fazer partícipes da natureza de nossa identidade. Esta transformação psicológica, e a fenomenologia que lhe corresponde, é mágico-teúrgica. Por outra parte, existem sistemas iniciáticos especialmente desenhados para transmitir estas verdades do pensamento analógico. Estes métodos estão carregados com o influxo espiritual de quem os tem trazido à luz e com a energia de todos aqueles que meditaram neles. Para isso foram construídos -assim como qualquer texto revelador ou sagrado, que sem este fim não teria sido escrito- e se confia em seu poder simbólico e sintético, que nos manifesta a cosmogonia através de uma mandala -ou jogo de estruturas- para nos fazer partícipes dela, utilizando códigos e símbolos como a árvore da vida sefirótica ou o jogo do Tarot.

Desta maneira, transmite-se a energia espiritual da revelação, e a pessoa que está em condições de compreender poderá ouvir as vozes e o chamado da Tradição e efetivar sua iniciação, quer dizer, começar o caminho do conhecimento. Para esse, então, certamente a maioria dos candidatos conheceram bastante o mundo que os rodeia, e de uma ou outra maneira, desiludiram-se dele; hão aprofundado com relação ao que a sociedade atual pode lhes oferecer como atrativo, sobretudo no que toca o plano da realização do autêntico ser. Ou seja, que efetuaram um trabalho de depuração e seleção com respeito a si mesmos, e essa busca os trouxe para os temas da tradição hermética, que quase nunca se encontram de forma casual. A partir de um momento determinado -para o qual terá que estar preparado internamente- produz-se o começo efetivo do processo de conhecimento. As provas iniciáticas são posteriores a esse ponto e as assimila ao passar pelo labirinto. As dificuldades que cada aspirante tenha encontrado até o momento da iniciação, devem ser tomadas apenas como circunstâncias preparatórias, por graves ou significativas que sejam.

Assim, articula-se um processo que, transposto ao plano do temporal, tem que ser visto necessariamente como sucessivo e gradual, e que compreende o conhecimento de sete, nove, ou mais estágios,69 segundo as diferentes tradições, e que se simbolizam em forma de pirâmide no espaço, ou, no plano, com a espiral -ou a dupla espiral- ou com um jogo de círculos concêntricos (uns dentro dos outros), que podem sintetizar-se em três grandes círculos ou níveis, correspondentes aos graus de aprendiz, companheiro e mestre, e aos subgraus que houver entre um e outro destes estágios.

Estas coisas são bem singelas de compreender, embora nem tanto de experimentar honestamente, motivo pelo qual [grande] quantidade de pessoas não têm feito senão confundir-se e confundir a respeito, amparando-se na ignorância de outros, constituindo-se em verdadeiros impedimentos da iniciação dos puros,70 fazendo-se desta maneira cúmplices de forças muito obscuras, que não nos atrevemos a qualificar, mas que podem formar parte deste processo e também truncá-lo definitivamente. Referimo-nos expressamente àqueles que negam a possibilidade da encarnação do conhecimento, através de um desenvolvimento, e repudiam desse modo a divindade do Cristo interno, contra a unânime opinião das tradições. São essas mesmas pessoas as que, ao não se sentirem qualificadas para essa empresa, permitem-se julgar os outros de acordo ao achatamento e mediocridade de seus padrões, motivo pelo qual se condenam a suas próprias limitações, sem que por isso seu desejo de danificar, e de fazer o mal, seja menos notório. Coisa curiosa, este tipo de seres é moralista e certas vezes pretende conhecer algo do processo iniciático. São inimigos tão embuçados como pueris, que pensam que a iniciação é uma cerimônia física, onde um extraterrestre impõe as mãos sobre um pobre ignorante e este se transforma imediatamente em superman. A iniciação seria, para estas pessoas, um diploma devidamente certificado e garantido por uma religião oficial, um prêmio por boa conduta e pontualidade, uma gratificação outorgada ao mérito. Tenhamos muito cuidado com os que "sabem" a respeito da doutrina, o mistério e a iniciação, falsos doutores da lei que condenam o processo de amor e paixão cristã. Esta gente está acostumada ser a mesma que aqueles outros obscuros sacristães de vocação, que pretendem ser "bons" e "piedosos", pela bondade e a piedade mesma71 fazendo verdadeiras competições para medir quem é o melhor e o maior dentre eles, enchendo-se todos de uma satisfação soberba, úmida e perigosa. Estes personagens, insignificantes em si, podem fazer grave dano, repitamo-lo, legalizando-se depois de uma ortodoxia mentida e uma localização e um conhecimento falsos; e o aspirante deve saber que são inimigos de sua evolução espiritual, aos quais tem necessariamente que vencer, no plano das ideias, porque é provável que sejam parte das provas de seu percurso e não só pessoas inocentes e equivocadas.

Do mesmo modo, há outra espécie que pode encontrar-se com o passar do processo e que, junto com a anterior, constitui um bloco muito marcado, que tem em comum com ela o fingimento, embora o aprendiz tem que saber que inumeráveis perigos lhe aguardam em forma de muitos personagens, que não são senão a projeção externa e social de seus egos internos. Trata-se, neste caso, daqueles que entendem que dominar as paixões é as ocultar. 72 Além disso, sempre com segunda intenção, intimamente associada com o poder. E não se permitem a menor demonstração de suas emoções, procedendo com a "habilidade" dos jogadores de pôquer, de gente com "guelra", que atuam com "sangue-frio". 73

Com muitos conceitos acontece o mesmo que com estes personagens, ou egos, e são autênticos riscos. Sem ir mais longe, com toda a terminologia atualmente em uso, que corresponde a uma leitura literal e materializada das palavras e dos termos, com respeito ao sentido com que foram concebidos. Esta confusão, este impedimento, não é um fato isolado, mas sim, pelo contrário, constitui uma amostra da degradação cultural general da sociedade moderna, cujo chefe, é necessário nomeá-lo, é o príncipe deste mundo, que, como tão bem já se disse, não só é um monstro do mal e da falsidade, mas também, por sobre todas as coisas, é um autêntico estúpido e um mentiroso. Personagem que todos levamos dentro e que nos faz nos vender constantemente por um prato de lentilhas.

Portanto, nada tem de irregular um processo iniciático que se realiza por meio dos ensinos, instrutores e mestres da tradição hermética -como tampouco outro que se efetue pela judaica, cristã, ou islâmica- e que se desenvolve de forma normal, face às dificuldades, insipidezes e paradoxos de todo tipo, próprias desta via mágico-teúrgica -em que se trabalha quase sempre solitariamente-, embora sua realização se produza em um meio tão irregular como o mundo moderno. E é necessário adverti: as pessoas a quem lhes começa a acontecer certos fatos referentes à abertura de sua consciência e lhes dá vontade de compartilhá-los, que devem tomar cuidado, porque estas coisas são perigosas. Mas também, poderão sentir-se suficientemente seguras para vivê-los com outros, ou outro, entre os quais se encontrará o Espírito, conforme se diz nos evangelhos. Igualmente, afirma-se que: "procurem e encontrarão", e, do mesmo modo, um adágio hermético assegura que: "quando o discípulo está pronto, o mestre aparece". Este último, se a atitude é adequada, surgirá de todas maneiras. É conveniente esclarecer, por um lado, que ninguém pode adicionar um só côvado a sua estatura, motivo pelo qual tem que chegar até onde pode e deve, no percurso da vida e o conhecimento. Por outro, que ao aspirante, apesar de seus múltiplos méritos, tudo lhe foi ou lhe será ensinado. Que nenhum homem pode nem poderá conhecer estes segredos, nem os descobrir por si mesmo, se não for por revelação e por sua participação em uma cadeia iniciática, com a qual se enlace. A via que aqui se propõe é a simbólica da tradição hermética e sua relação com a simbólica e com a mitologia universal. Onde um símbolo ou mito não resulta claro, em tal ou qual contexto, busca-se a analogia correspondente nesta ou naquela tradição. As transposições e relações que se efetuam com os símbolos constituem grande parte do trabalho hermético. Um símbolo chinês, ou pré-colombiano, pode iluminar imediatamente um símbolo europeu e desta maneira constituir-se em parte integrante de um jogo de relações, de ideias, que se não fosse por sua participação, não poderiam se efetuar. Deve se recordar, uma vez mais, a energia-força atribuída aos símbolos em geral e aos da tradição hermética -neste caso em particular- e a sua irradiação mágico-teúrgica. Também deve se prestar atenção completa aos textos dos sábios, hierofantes e magos, que atuam de uma maneira especial, entre quem é capaz de recebê-los, e os conduzem ao jardim do paraíso, ou estado adâmico, restituindo-os ao andrógino original. Em todo caso, devemos assinalar, para finalizar, que certamente é muito benéfico o transitar especificamente uma tradição religiosa determinada, e praticar o rito esotérico correspondente. Mas de maneira nenhuma é imprescindível, pois os mistérios da tradição hermética -que não é religiosa- e a iniciação nos mesmos, não só constituem o patrimônio vivo do Ocidente, mas também, acaso, sua razão de ser, como um gesto, ou uma cor, no espectro da história humana. Tradução: Igor Silva

 

NOTAS 

54     Não confundir com a estreiteza e com o fanatismo do dogmático.

55     Do latim tradere: transmitir. 

56     A quem miticamente costuma-se atribuir a paternidade do código do Tarot. A ave Íbis é um de seus símbolos. 

57     CO-nhecer = CO-nascer [NT: conforme o original espanhol "CO-necer = CO-nacer"]. Em francês é mais evidente: CO-naitre

58      Infernus 

59      Pensamos que não deve associar os mistérios menores com o budismo hinayana e os maiores com o mahayana. O hinayana designa o pequeno veículo e significa a via que o adepto, ou o monge, efetua por si e para si. O mahayana ou grande senda, é a realização que não se produz "até que a última erva seja redimida", quer dizer, a que se alcançaria conjuntamente com todos os seres sencientes. Esta diferença não cabe entre os mistérios menores e os maiores. Tampouco os mistérios menores correspondem ao que se convencionou chamar "a via úmida" e os maiores, à "via seca". Nem que os primeiros sejam lunares e os segundos solares. Os mistérios menores correspondem à totalidade da obra alquímica e à astrologia e, portanto, à via lunar; e a solar, à obra em branco e à obra em vermelho, às pequenas e às grandes viagens. Nos mistérios maiores, a ideia da viagem, e ainda a de movimento, carecem de sentido. 

60     Alguns tomam especificamente o ano 1492 como encruzilhada deste fenômeno histórico. Efetivamente, nessa época se unifica a Espanha católica, descobre-se a América e são expulsos os mouros e os judeus (e inclusive os ciganos) da península Ibérica. Este tema exigiria um longo desenvolvimento, que em alguma oportunidade tentaremos.   

61     Além do mais deve-se dizer que esta degradação também afeta à Tradição Hermética, que em muitos casos se degenerou em paródias e instituições pseudo-espiritualistas, ocultistas, teosóficas e em toda espécie de fraternidades e confrarias que usurparam determinados conhecimentos, rebaixando-os à trivialidade de sua leitura literal. O mesmo acontece com os nomes e terminologias da autêntica tradição, com os quais se comercializa em forma descarada, quando não "filantrópica". 

62     “Quem é Platão?”, perguntamo-nos várias gerações de leitores.   

63     Ainda existe o esoterismo dentro desta forma tradicional, e não exclusivamente localizado no monte Athos.   

64     Atualmente não é difícil conectar-se com membros ou representantes de tradições orientais, seja viajando para eles ou assistindo a cursos e ritos em distintas cidades europeias ou americanas. Especialmente mestres taoistas e zen budistas, assim como lamas do budismo mahayana. Igualmente existem no Ocidente tarîqahs islâmicas, entre as que podemos citar, em cidades de língua castelhana, a de Granada (Espanha) e Buenos Aires (Argentina) A tradição hindu é, desgraçadamente, a vítima mais notória de todo tipo de fraudes. Onde isto é mais evidente, é na própria a Índia, e até em cidades sagradas como Varanasi, Rischikesh e Harivard. Estes mesmos perigos existem dentro da Tradição Pré-colombiana, ou melhor, entre alguns que pretendem conhecê-la ou até representá-la, o que não é o caso, é obvio, de seus autênticos chefes, mestres, ou de seus curandeiros [NT: original "medicine men"]. 

65    A contemplação pode-se vincular, em maior grau, com a energia celeste, enquanto que a ação pode-se conectar, mais diretamente, com o terrestre. 

66    No sentido de sacrum-facere

67    Interessa destacar a força energética da oração, seu poder de concentração imediato, a necessidade da invocação incessante dos nomes divinos, sua repetida lembrança, sua memória trazida constantemente ao sempre Presente. 

68     Recordar os numerosos cavalos mágicos, ou que falam, das distintas tradições e folclores. 

69     Na tradição hermética soem tomar-se às vezes como dez a estes graus, sendo os sete primeiros os de construção do ser ou templo interno, o oitavo de passagem, o nono de conclusão da Obra, e o décimo, o de coroação da mesma ou virtual saída do cosmos ou da perspectiva espaço-temporal simplesmente humana, que se foi modificando pouco a pouco com o passar do processo. 

70     Os puros, os não compostos nem duplos. Os valentes e generosos aspirantes ao conhecimento. Nenhuma relação com as piedosas "filhas da Maria". 

71     Como os que desejam ser ascéticos ou estoicos, pela ascética e o estoicismo como fins, e não como simples veículos ou meios, que aparecem no caminho. Uma vez mais se faz de algo relativo, algo absoluto. 

72     Em lugar de utilizar esse fogo e domesticá-lo, de tal maneira que facilite a transmutação. 

73     São os meninos maus do passeio, ou aqueles que já "sabem" ou que confundem sua megalomania com a verdade. Seu esporte é a constante manipulação.