SIMBOLISMO E ARTE
Federico González

Teurgia
August Strindberg, Antibarbarus
Estocolmo 1906
VI
ARTE TEÚRGICA
 
Se a Alquimia for a arte e a ciência das transformações e transmutações, a Teurgia persegue os mesmos fins e se apóia em idênticos princípios, quer dizer, em analogias e correspondências. Mas a Alquimia trata mais do ser individual que do universal, do microcosmo mais que do macrocosmo. Na realidade, tanto Alquimia como Teurgia operam de modo semelhante e devem ser distinguidas da hiperquímica (material e metálica) e da magia mal denominada de "cerimonial", enquanto procuram exclusivamente conquistas verificáveis baseadas na relação causa-efeito, sempre personalizadas e individualistas em contraposição com a magia natural e a Alquimia autêntica, despersonalizadas, atentas sempre aos princípios e à ordem dialética da Criação. O interessante do assunto é que tanto Teurgia quanto Magia utilizam procedimentos similares, sendo que talvez sua diferença se estriba nem tanto na índole da coreografia ritual, mas sim no ânimo dos participantes, em suas intenções e, sobretudo, no conhecimento direto do universo de energias invisíveis que a cerimônia expressa e plasma.

Na base de todo rito, incluído o mágico, encontra-se a idéia de que o Universo é um Todo indissolúvel e indivisível em partes. Esta harmonia está dada pela oposição contínua de dois fatores que devem se complementar, seja pela guerra, quer dizer, atacando e rechaçando, ou seja pela paz, assimilando por simpatia. Em ambos os casos se procede por correspondências ou analogias inversas.

Exercer ação sobre uma coisa é exercer essa ação sobre um conjunto inumerável de coisas em um mundo concebido como concatenado; igualmente, fazê-lo sobre um ser humano implica realizá-lo em toda a humanidade; a economia da Teurgia fixa seus próprios limites os sem impor. Seus fins são imprecisos, seus meios têm que ser exatos, por paradigmáticos e míticos e perfeitos, quer dizer, especialmente adequados à situação espaço-temporal que o rito assinala, embora resultem totalmente paradoxais para o próprio operador que, em sua gestão, não sabe definir com claridade –e não o necessita– onde e como os distintos êxitos de sua própria e divina comédia puderam ser traduzidos em meio de uma Revelação Permanente.

O homem é o coração do Universo. Efetivamente o microcosmo cumpre a mesma função no cosmo que o coração no corpo humano, e através de sua dualidade, referente a suas duas naturezas –divina e humana (sístole e diástole)–, é capaz de recriar perenemente a vida, com a qual se encontra indissoluvelmente unido, pois é um todo com ela, correspondendo-se ambos de maneira perfeita e idêntica ao ponto que constituem, constituíram e constituirão, uma mesma entidade. O mundo inteiro está animado e perfeitamente vivo hoje em dia (e sempre), como um animal ou ser gigantesco cujas partes ou organismos se articulam e moldam constantemente entre si, impulsionados pelos movimentos de seu coração, o ser humano, centro do Universo. E este ser, sendo parte essencial da criação, regenera permanentemente o cosmo, até mesmo apenas com sua presença.

Em um mundo assim, tudo é mágico e cada gesto, signo ou palavra, um ato generativo capaz, por sua vez, de produzir indefinidos reflexos de suas próprias características. Isto é fazer a criação perpetuamente e o homem conheceu esta realidade sempre, até de modo inconsciente, e participou dela, como o provam legiões de sábios egípcios, caldeus e gregos, sacerdotes pré-colombianos, xamãs siberianos, magos herméticos e também, em seu nível, diversos artistas, políticos, ilusionistas e vendedores ambulantes. Por outra parte, então, que seria mais operativa e mágica do que a oração do coração que, devido a uma concentração no cerne do ser humano que pronuncia a prece ou invocação, dirige-se ao coração do Ser Universal, com o qual pretende e consegue harmonizar-se?

Como se pode perceber, nada tem em comum esta ciência com qualquer cerimônia mágica de tipo "positivista" e de elementar relação causa-efeito, sempre de objetivo imediato, utilitário, e personalizado. A Arte Teúrgica é impessoal e seus ritos adequados à cadência e harmonia da magia natural, que gera permanentemente os fenômenos e substâncias da criação mediante arquétipos imutáveis que, paradoxalmente, trocam constantemente de modo, virtude que permite à individualidade do xamã se acomodar ao ritmo universal, ser uno com ele e, portanto, gerar sua própria criação, havendo previamente destruído todas as formas como passo necessário para a construção de qualquer ordem, seja esta sua personalidade, o entorno onde se projeta, ou o espaço que lhe foi atribuído.

Na realidade, qualquer interpretação a respeito desta arte efetuada com olhos profanos, quer dizer, com a programação contemporânea, estará viciada de nulidade já que é impossível compreender um tipo de mentalidade cuja cosmovisão, usos e costumes, e sobretudo sua atualização permanente da realidade do invisível e do desconhecido, organiza sua vida e comportamento. Para este tipo de gente, a vida é um jogo perpétuo de luzes e sombras, de espaços constantemente renovados, uma representação o suficientemente mimetizada para parecer verdadeira. A possibilidade é a raiz da Teurgia, a criação seu indefinido campo experimental. Por sua natureza, o Universo é mágico; o mesmo vale para o microcosmo. Mas se deve condicionar que o rito impessoal, depois de tudo, personaliza-se, que o invocado chega a ser forma e imagem, materializa de distintas maneiras; e que toda tentativa de expor de modo mais ou menos racional o que não segue esse discurso é de por si um ato fracassado em relação à soma do incognoscível e a autêntica presença do mistério inefável. Em suma, para o xamã-mago é muito mais importante essa outra realidade, esse outro mundo, invisível, e, entretanto, tão real que é a fonte –segundo ele– onde se origina qualquer fenômeno ou coisa, que qualquer outra aparência, sempre ilusória.

Na Teurgia, não existem os fins particulares, mas sim os prototípicos, que são simbólicos; nesse sentido, soem ser exemplares, como os mitos, suas estruturas e personagens.

É necessário esclarecer que a Teurgia não espera resultados concretos e, igualmente, muitas vezes o xamã ou mago é só um símbolo pelo qual se transmitem energias, ou vibrações que ele canaliza com total prescindência de sua aprovação ou desaprovação pessoal. O fato do próprio interessado ser consciente ou inconsciente de seus poderes, ou melhor, em que medida é consciente, tampouco afeta sua irradiação múltipla, que pode se transformar em inumeráveis possibilidades, desencadeadas, às vezes, apenas pela sua participação. Neste sentido o xamã é em si uma teofania, ou se transforma nela durante sua atividade mágica, que constitui o núcleo central de todo rito.

A Teurgia é sempre atual, jamais a ninguém que participou de algum de seus ritos lhe ocorreu verificar o "resultado" de suas cerimônias. Quando o xamã acende o fogo gera vida, no momento em que derrama água sobre a terra já está chovendo, o universo se encontra estreitamente ligado aos homens, que o conformam; somos sinais em um mundo de sinais e o mago é um gerador, operando seus ritos ancestrais, renovando o mundo à perpetuidade. Suas cerimônias não são vãs, ao contrário, são imprescindíveis para que se reconheça o Si mesmo dentro do si mesmo; são, portanto, tão arquetípicas quanto necessárias e sua ação imediata, e sobretudo mediata, é fundamental, e podem frutificar em inumeráveis formas, e cada uma se organizará em conjuntos e estes em estruturas precisas, que terminarão se manifestando concretamente. Eis a enorme importância atribuída à Teurgia, ciência que acompanha os ritmos do cosmo, como o faz a natureza, e que, como ela realiza seu gesto desinteressado e gratuito para preservar a vida do mundo, como igualmente a do homem, portanto, a da espécie; desta forma, o objetivo último da Teurgia é ligar com a cadeia interna de união, com a Igreja Secreta, o Colégio Invisível que opera e se manifesta em nós e em nosso entorno, dando-nos assim o poder de expressar a Ciência Sagrada.

Na realidade, a arte mágico-teúrgica consiste na efetivação do pensamento e da doutrina cosmogônica tradicional, realizada na sempre transitória realidade de gestos, âmbitos, vozes e estruturas que acontecem nos bordes do tempo. Esta adaptação às circunstâncias com que se condiciona a vida do homem constitui uma permanente atualização dos princípios, aos quais a cosmologia sempre se refere, e uma revivificação constante das leis universais, que o operador mágico conhece e projeta –às vezes sem objetivo aparente– em seu meio sob a forma de uma circunstância anedótica, histórica, sempre mutável.

Na realização da Obra Teúrgica há certa teatralidade, tratem-se ou não de cerimônias propriamente ditas. Isto é perfeitamente lógico em se considerando que o adepto é tirado totalmente de seu condicionamento, tendo em vista que seus valores já são outros, a ponto que a programação que lhe servia até o momento não é válida para diferentes espaços mentais e distintos tempos internos. Isto produz uma contradição, um drama (ou comédia), na psique do xamã, um autêntico psicodrama que inclui às vezes estranhos comportamentos ou atitudes inabituais, não só para outros, mas também para o mesmo mago, imobilizado de assombro. No treinamento da arte de perceber a teatralidade constante da vida, é pressentida e começa a ser percorrida uma superestrutura que compreende a própria vida, que, entretanto, não é distinta desta, embora constitua um outro espaço.

Quanto aos trabalhos do "aprendiz", o primeiro é levar a idéia de rito a todos os âmbitos da vida e sua cotidianidade pessoal. O segundo é saber que isto não deve realizar-se nunca de maneira literal, de uma forma linear, mas de viver ao ritmo do compasso cósmico, observando a sacralidade do entorno físico-anímico, derivado de um ser espiritual, tão invisível como inteligente. Não é pois só uma sistematização de gestos e invocações que sempre acabam em forma esclerosada, mas sim a intuição da Verdade e da Beleza reunidas harmonicamente no corpo da Inteligência Universal, deidade tão precisa quanto esquiva, sempre aérea ou radiante.

Em todo caso, se muitos de nossos labores não têm êxito, ou não contamos momentaneamente com a energia necessária para os levar a cabo, ou não estamos, simplesmente, satisfeitos conosco mesmos, de maneira nenhuma mingüemos nesse trabalho, muito menos nos compadeçamos, nem adotemos circunstancialmente valorações do homem velho, ou encarnemos furiosas reações contra a ignorância que nos margina; até se nosso enorme esforço por realizar uma mensagem pudesse nos parecer transitoriamente coisa impossível, matéria vã, devemos recordar que no grande laboratório da criação universal se conseguem resultados a custa de enormes gastos (nunca desperdícios) de energia, e isso particulariza qualquer processo criativo. Por outra parte, se nossas diligências e labores só servissem para difundir a Tradição Unânime que se mantém viva das origens do homem e do universo, isto já seria farto suficiente de acordo com as possibilidades que cada vez se fazem menores à medida que se aproxima o fim dos tempos. Já se sabe que o mal de existir é só momentâneo, como todo mal, incluindo os sacrifícios que nos impõem e as "enfermidades" ou "desajustes" que tantas vezes nos afligem com o passar do caminho e que tendemos a ver como indignos (de acordo à programação do homem velho), quando não são, às vezes, os sintomas evidentes de um processo regenerador profundo.

Para terminar, assinalaremos que uma das práticas teúrgicas de maior importância no Ocidente, e que teve também valor primitivo sob diversos aspectos entre os povos arcaicos, é a invocação às Musas por meio de encantamentos; precisamente assim o fazem ao encarná-las os magos, xamãs, filósofos, sábios-sacerdotes, reis autênticos, heróis, bardos e histriões. Sobre elas nos fala Homero na Ilíada e Hesíodo em seu Teogonia. este último assim as invoca:

Ditoso aquele a quem as Musas querem: doce flui de sua boca o acento.

Pois se a alguém, com dor na alma recém atormentada, aflito, seca-se-lhe o coração, e um aedo, das Musas servo, as façanhas dos homens antigos canta, e aos deuses beatos que o Olimpo possuem, aquele logo de suas angústias se esquece, e nada de penas recorda; pois logo das deusas o divertem os dons.

Salve, filhas do Zeus, o deleitoso canto me doem.

Celebrem a sacra estirpe dos deuses sempre existentes, os que de Gea nasceram e de Urano estrelado, e da noite tenebrosa, e os que criou Ponto salobre; (dizei como, primeiro, os deuses e a terra nasceram e os rios e o mar infinito, que furioso se rebenta, e os astros resplandecentes e, acima, o céu espaçoso;) e os que deles nasceram, deuses doadores de bens, e como dividiram as riquezas e honras partiram e enfim como, primeiro, o penhascoso Olimpo ocuparam. Isto dizei-me, Oh! Musas, que têm olímpicas moradas, desde o princípio...

Na Grécia e Roma eram nove, estavam sob a direção de Apolo e eram veneradas por todos aqueles que se dedicavam a trabalhos de Conhecimento, ou seja: Ciência e Arte; por outra parte, muitos outros autores as mencionam. Filhas de Zeus e Mnemósine, a traços largos se pode resumir a atividade destes entes espirituais, destas deusas: Calíope, poesia épica. Clío, história. Erato, poesia poesia lírica e cantos sagrados. Euterpe, música de instrumentos de sopro. Melpómene, tragédia. Polymnia, mímica. Talía, comédia. Terpsícore, música geral e dança. Urânia, astronomia.

Walter F. Otto em seu estudo As Musas afirma:

Horácio, na mais formosa de suas odes romanas (Carm. III 4), chamou a Musa do céu para cantar um extenso poema e como ele experimentou sua enfeitiçante proximidade, viu como as Musas o protegeram como a um menino e mais tarde o salvaram no perigoso caminho da vida e se sentiu disposto a enfrentar alegremente toda tempestade e toda moléstia, só quando elas estavam a seu lado.

Entretanto, tomam igualmente formas diversas no horto mágico da alma. Assim Platão em seu Fedro (245), ao falar do delírio como dom profético,

um dom magnífico quando nos vem dos deuses, é mais nobre que a sabedoria dos homens,

explica-nos 41:

Há uma terceira classe de delírio e de possessão, que é a inspirada pelas musas; quando se apodera de uma alma inocente e virgem ainda, transporta-a e lhe inspira odes e outros poemas que servem para o ensino das gerações novas, celebrando as proezas dos antigos heróis. Mas todo o que tente aproximar-se do santuário da poesia, sem estar abalado por este delírio que vem das musas, ou que creia que a arte só basta para lhe fazer poeta, estará muito distante da perfeição: e a poesia dos sábios se verá sempre eclipsada pelos cantos que respiram um êxtase divino.

Como se vê por seus atributos estes espíritos femininos estiveram presentes ao longo da história do homem, como muitos outros sob distintas formas na totalidade dos povos, que souberam reconhecê-los e entabular relações com eles de maneira unânime. Por que motivo esses seres espirituais, ou energias reais, caso se queira, supõe-se que não existem hoje em dia? Acaso só porque se os nega? Por outra parte: o que ou quem nos impediria de tomar contato com as deusas e entes espirituais que nos aguardam e conformam?


NOTA
41 "Quando os povos foram vítimas de epidemias e de outros terríveis açoites em castigo de um antigo crime, o delírio, apoderando-se de alguns mortais e lhes enchendo de espírito profético, obrigava-os a procurar um remédio a estes males, e um refúgio contra a cólera divina com súplicas e cerimônias expiatórias. Ao delírio se deveram as purificações e os ritos misteriosos que preservaram dos males presentes e futuros o homem verdadeiramente inspirado e animado de espírito profético, descobrindo-lhe os meios de se salvar". Fedro (244). Platão.