Histoire de la vie, miracles, enchentements et
prophecies de Merlin, Paris 1498
HERMETISMO E MAÇONARIA 
Doutrina, História, Atualidade
Federico González
 
I. OS LIVROS HERMÉTICOS (2)

Quanto a autores antigos que conheciam o Corpus Hermeticum ou os Hermetica, ou ainda se pensava que, em algum caso, eram os responsáveis por estes livros, nomearemos a Plutarco,10 Jâmblico,11 Hermias,12 e inclusive Apuleio, iniciado nos mistérios "egípcios", ao qual se atribuiu posteriormente a autoria do Asclépio.13 Eis aqui o que diz por sua parte o neoplatônico Proclo com relação a nossa deidade:

… e de fato este deus é o éforo dos ginásios (razão pela qual se colocavam estátuas de Hermes nas palestras), da música (por isso é que é honrado como Hermes da lira no céu), das ciências (a ele se atribui o descobrimento da geometria, dos raciocínios, etc.) e da dialética (já que este deus é o inventor de todo discurso, se for verdade que é ele quem imaginou a fala, como se aprende no Crátilo). Posto que preside toda a educação, compreende-se que seja o guia, aquele que nos conduz para o inteligível, que eleva nossa alma fora do lugar mortal, que dirige os diversos grupos de almas, que dispersa seu sonho e seu esquecimento, que é o dispensador da reminiscência, cujo fim é a intelecção inteiramente pura dos seres divinos.14


Mas isto não é nada; o mesmo Proclo no ano 453, quando tinha 41 anos, recebe em sonhos a revelação de que sua alma pertence à corrente de Hermes, conforme o narra seu biógrafo e discípulo Marinus (Vida de Proclo, 28). Esta revelação a obtém de Asclépio, deus muito popular na Atenas de seu tempo. Hipólito de Roma (Séc. II - ca. 236), grecófono radicado nesta cidade, refere-se também em seus Refutatio a representações de Hermes de origem egípcia, especialmente uma existente na cidade de Cilene:

Os gregos receberam este mistério dos egípcios e o custodiam até o dia de hoje. Vemos, efetivamente, aos Hermes honrados por eles sob esta forma. Veneram-no como o intérprete e artífice do que era, é e será, e se levanta representado sob esta forma, isto é, com o membro viril mostrando o impulso das coisas inferiores para as superiores (V, 7. 29). No templo da Samotracia se levantam duas estátuas de homens nus, com ambas as mãos estendidas para o céu e ereto o membro viril tal como a estátua de Hermes em Cilene. Tais imagens representam o homem primitivo e o espiritualmente regenerado, em tudo consubstancial àquele homem (V, 8. 10).15


Também conheceram o Asclépio Lactâncio,16 Santo Agostinho e Zósimo17 e da mesma maneira Fírmico Materno, astrólogo romano e hermetista do Séc. IV (que se envaidece de haver transcrito as revelações de Hermes), São Cirilo de Alexandria,18 Miguel Pselos.19 Na Cidade de Deus (livro VIII, 23), Agostinho (354-430: Confissões, De Trinitate, Questões sobre o Heptateuco, Sobre a origem da alma, Sobre a presença de Deus, etc.) refere-se ao Asclépio e ao famoso tema das estátuas animadas: "de modo diverso sentiu e escreveu deles Hermes, egípcio, a quem chamam Trismegisto; pois Apuleio, mesmo que conceda que não são deuses, mas dizendo que são mediadores entre os deuses e os homens, de modo que são necessários aos homens para o tratamento com os próprios deuses, não diferencia seu culto da religião dos deuses superiores. Mas o egípcio diz que há uns deuses que os fez o supremo Deus, e outros que os fizeram os homens." A crítica de Agostinho ao Asclépio é muito violenta e segue até o final do livro VIII. Proclo, por outra parte em sua Teologia Platônica (livro I, 1) diz: "… que foram seus discípulos e que alcançaram tal perfeição que podemos compará-los a estátuas".20 Nesse mesmo tratado (I, 29) Proclo compara os Nomes divinos com essas estátuas: "Posto que produz os nomes dessa maneira, nosso conhecimento científico os apresenta a este último nível como imagens dos seres divinos; efetivamente, produz cada nome como uma estátua dos deuses, e o mesmo que a teurgia, mediante certos sinais simbólicos, invoca a bondade generosa dos deuses em vista da iluminação das estátuas confeccionadas artificialmente, igualmente o conhecimento intelectivo relativo aos seres divinos, mediante composições e divisões de sons articulados, revela o ser oculto dos deuses." Estes discípulos também aparecem no texto das Argonáuticas Órficas, obra provavelmente do séc. IV atribuída a Orfeu, onde se narra o mito dos Argonautas (outras que tratam o tema são atribuídas ao Apolônio de Rodes, e a Valério Flaco): "Contemplei à ilustre e tríplice descendência do Hermes…" (Gredos, Madrid 1987). Isidoro de Sevilha (560?-636) escreve em suas Etimologias (Livro VIII, 49):

O nome grego de Hermes deriva de hermeneia, que o latim traduz por 'intérprete'. Por seu poder e conhecimento de numerosas artes é conhecida como Trismegisto, quer dizer, "o três vezes máximo".


Igualmente se afirma que Valentin, o melhor representante do pensamento gnóstico cristão, conhecia estes textos,21 e ainda que o autor do prólogo do evangelho de São João estava impregnado da atmosfera de muitos destes escritos, assim como o autor ou autores do livro da Sabedoria bíblico, um manuscrito grego do primeiro século de nossa era. Outra obra que devemos mencionar são Os hinos Órficos e duas coleções: os Oráculos Caldeus,22 e a chamada Textos de Magia em papiros gregos,23 obtidos estes últimos do século XVIII em Tebas e El-Fayum e que estão depositados em várias bibliotecas européias, manuscritos na mesma época que os Hermetica e escritos em copta.24 Anotemos que a palavra caldeu era sinônimo do teurgo, assim como se costumou associar este último termo, de igual modo, ao de hermetista; voltaremos mais adiante sobre isso. 

A influência dos Hermética parece ter sido também muito importante no Islã, já que foram conhecidos e citados os textos filosóficos, e os livros médicos, astrológicos, mágicos, e em geral aquilo que na atualidade pode considerar o Hermetismo. O pensamento hermético penetra no Islã por várias direções e não só através dos escritos gregos, mas também por meio de seitas sírias, como a dos sabeus, e da astrologia sânscrita conhecida em Bagdá no Séc. VIII e exposta por Kanata, um hindu. Imediatamente, Hermes foi identificado com Idris e por certo com Enoque e Agathodaimon, conhecidos em muitos países do Islã tal como Seth. Também se pensava que era contemporâneo do surgimento das Plêiades, no ponto vernal, que 3.300 anos antes de nossa Era tinha sido o ponto de partida do calendário egípcio; igualmente encabeçava com seu nome (Thot) o primeiro mês de dito calendário. Deste modo deve se destacar que uma das pirâmides era e é considerada como a "tumba de Hermes" (o nome árabe para pirâmide é haram), não porque ali jaza seu corpo que, idêntico a Enoque, foi levado ao céu e não morreu (assunto que, por outra parte, sucede com o Hermetismo), senão que nesse lugar jazem enterrados, ou melhor, ocultos, os grandes segredos da Ciência Sagrada, seus mistérios e revelações.25 

Numerosos são os textos da literatura hermética árabe que subsistem atribuídos a Hermes Trismegisto. Jean Doresse26  limita-se a citar três exemplos chaves:

1. "O Livro do segredo da Criação, compilado por volta do 825 –na época, pois, em que as doutrinas sabéias e a astrologia hermética indianizada reforçavam, em Bagdá, as sobrevivências diretas– foi extraído de um tratado de Hermes Sobre as causas… e atribuído ficticiamente ao Apolônio de Tiana, chamado em árabe Balinus. Oferece como motivo de duplo interesse, uma exposição da criação e o célebre relato do descobrimento da Tábua de Esmeralda."

2. "Turba philosophorum, segundo sua tradução latina medieval, é uma compilação, sem dúvida diretamente elaborada em árabe, em que se incluem fragmentos dos Physika e Mystika democriteus. O relato pretende ser a narração de uma reunião dos grandes filósofos da Antigüidade, presididos por Pitágoras, que é apresentado como discípulo de Hermes: nela, os reunidos intercambiam suas idéias sobre a criação, antes de passar a discutir os temas alquímicos."

3. "A meta dos sábios, manual de astrologia talismânica, inspirado em fontes sabéias, que data do século XI; obra fictícia de Hipócrates, cujo nome, deformado pelo árabe e transformado de novo na tradução latina, ficou convertido em Picatrix, nome com o qual é conhecida a própria obra." 


Com respeito ao descobrimento da Tábua de Esmeralda expressaremos que Titus Burckhardt em seu livro Alquimia,27 assinala que:

… a mais antiga referência a ele foi achada num escrito de Dyâbir Ibn Hayyân, do século VIII e sua versão latina era conhecida já por Alberto Magno. 


Para terminar com o hermetismo islâmico citaremos de Henri Corbin, reconhecido especialista, algumas passagens de sua História da Filosofia Islâmica28:

… os sabeus de Harran faziam chegar sua linha genealógica a Hermes e Agathodaimon. Seu mais célebre doutor, Thâbit ibn Qorra (288/901), escreveu em siríaco e traduziu ao árabe um livro das Instituições de Hermes. … De fato, a filosofia hermética se considera uma hikmat ladonîya, uma sabedoria inspirada, quer dizer uma filosofia profética.

Tal como muitas "grandes personalidades" da época, o filósofo iraniano Sarakhshî (†286/899), aluno do filósofo al-Kindî, era shiita ou passava por tal. Sarakhshî tinha escrito uma obra (hoje perdida) sobre a religião dos sabeus. Seu mestre, al-Kindî, tinha lido igualmente o que Hermes ensinava a seu filho (referência implícita, sem dúvida, ao "Poimandres"), relativo ao mistério da transcendência divina, e afirmava que um filósofo muçulmano como ele não teria podido expressá-lo melhor.

Os neoplatônicos do Islã, que levam a cabo a síntese de especulação filosófica e experiência espiritual, reivindicam para si uma cadeia iniciática (isnâd) que se remonta a Hermes: assim o fizeram, por exemplo, Sohravardî (587/1191) e Ibn Sab'in (†669/1270).29 


Como vemos, no Islã Hermes e o hermetismo sofreram diversas transformações, tanto o nome do deus, quanto sua forma segundo se adapta a lugar e tempo, ou a determinados grupos centralizados em tal ou qual mestre, embora sempre mantendo suas características de "inventor" da palavra, educador, psicopompo e energia versátil que sabe adaptar-se às circunstâncias espaço-temporais e particulares, sem que esta plasticidade altere seu caráter fundamental de intermediário, de mensageiro dos deuses, númen tutelar de toda invocação que se dirija ao Deus Desconhecido, a sua ocultação e revelação. 

Para o Islã era também claro o que hoje em dia se estabeleceu abundantemente: a relação destes livros com o Egito, de onde se recebeu um fundo mitológico, cosmogônico e soteriológico de base, tal como fórmulas médicas, astrológicas e mágicas que adquirem a forma de uma Filosofia, ou melhor, de uma Gnose, no período greco-romano desse país e deve se estender por todo o Mediterrâneo até Roma e, inclusive, até a Pérsia e a Índia. Portanto a investigação pode seguir os rastros e traçar um panorama desta antiga concepção teosófica egípcio-grega e pagã que subsistiu e se testemunha na Alexandria nos primeiros séculos de nossa era e que, graças a sua expansão para e em Roma (como o cristianismo), subsistiu em forma mais ou menos oculta e subterrânea até o presente no Ocidente;30 não são só lendas as viagens de Pitágoras e de Platão ao Egito narradas por Jâmblico e outros autores antigos. 

O Corpus Hermeticum sustenta que entre o Noûs e o homem não há intermediários posto que é o Noûs do homem que se revela a si mesmo. A única mediação é a da Inteligência que ilumina esta relação estabelecida sempre, possibilidade que todo homem leva em si. É por isso que a Tradição Hermética não constitui nem constituiu uma religião, com autoridades por um lado e fervores pelo outro, o que não tira o reconhecimento das hierarquias divinas, tema fundamental no Hermetismo, nem tampouco determinados cultos particulares ou grupais realizados segundo a estrutura cósmica, outra das matérias próprias da Tradição Hermética e da Maçonaria. Por isso é também óbvio que não haja ministros, nenhuma autoridade comum, nenhuma doutrina vista de um só ponto de vista dogmático, nem ninguém que possa adotar a paternidade destes ensinamentos. 

Por outra parte, é evidente que sem o dogma religioso e o aparato eclesiástico de um lado, e de outro a carência de grupos específicos "autorizados", a iniciação se deixa a cargo do individual, quer dizer às pessoas postas sob a avocação de Hermes, ou seja àqueles buscadores do Conhecimento e da Sabedoria, Adeptos aos Mistérios da Ciência Sagrada, recipiendários de uma Influência Espiritual vinda das mais remotas origens (verticais e horizontais) e que, feito uma corrente de ouro, prolonga-se, sempre nova, incólume, até nossos dias, que se pode perceber inclusive em sua projeção histórica e nos documentos espirituais-intelectuais que a abonam. Nesta questão das cerimônias coletivas o hermetismo não só difere do cristianismo, que hoje inclusive renega todo esoterismo, mas também das outras religiões do livro (embora nelas também esteja contemplada a figura do "solitário")31, mas não do Taoísmo, e outros numerosos modos tradicionais e arcaicos de Conhecimento, vivos e mortos, que têm tantas formas iniciáticas quanto iniciados. Mas isso não impede tampouco que ao longo de sua história tenha tomado diversas maneiras, como é o caso de numerosas escolas e grupos no passado e como aconteceu na Idade Moderna com a Maçonaria, cuja origem Hermética –baseada desde o começo na quase assimilação do nome Hiram com o de Hermes, sendo HRM a raiz comum–, cabalística, astrológica, pitagórica, construtiva e alquímica é indiscutível já que se encontra presente em seus mesmos símbolos e ritos conformando seus próprio andaime, e inclusive a totalidade de seu edifício. Neste ponto anotaremos que o Mestre interno, do que de uma ou de outra maneira falam todas as tradições, revela-se diretamente na Tradição Hermética, e tão generosa possibilidade lhe é proporcionada por Deus mesmo, capaz não só de gerar o mundo mas também de criar ao homem pneumático, ao Verdadeiro Anthropos. Supõe-se que aquele que recebeu tal presente (que imaginamos é muito grande para qualquer) é para a Tradição Hermética, um gnóstico. Entretanto o Hermetismo e o Corpus Hermeticum são duas coisas diferenciadas, embora com muito estreito contato entre si, já que o último codifica uma série de idéias, imagens e formas de um tipo de pensamento baseado em análogas premissas, que por sua vez outros grupos conhecem, à par que são transmissoras de sabedoria e de uma influência espiritual que muitas vezes cristaliza em métodos de trabalho no caminho iniciático. Em todo caso, o que fica claro, é que nenhum hermetista utilizou os textos do Corpus Hermeticum –inclusive muitos deles não os conheceram– como uma "bíblia", senão mais como uma fonte permanente de inspiração e um compêndio de sabedoria.32

De fato o Corpus Hermeticum é perfeitamente compatível com o resto dos Hermetica, assim como com os desenvolvimentos que alquimistas, filósofos, astrólogos, cabalistas os teurgos, artistas da pedra, ou Adeptos ao Conhecimento manifestaram posteriormente, embora em alguns casos não os conhecessem de maneira direta, tal a energia-força que a influência tradicional do Hermetismo é capaz de transmitir, às vezes através de "inocentes jogos mágicos" como é o caso do Tarot, chamado às vezes "o livro de Toth". 

O certo é que os livros que formam o Corpus Hermeticum (Poimandres, Asclépio, Extratos de Estobeu) têm uma unidade em seu conjunto: o Asclépio pode, ele só, dar conta disso. Não acontece o mesmo com o Poimandres em sua totalidade, embora haja alguns livros que o compõem que formam um bloco, e fica algum outro que está mais relacionado com este ou com aquele; entretanto há uma unidade entre eles, assim como entre o Poimandres e o Asclépio e ambos com os Extratos de Estobeu, participando de uma atmosfera, uma linguagem, e um desenho que também está presente na Tábua de Esmeralda e em geral em toda a literatura hermética.33 Também no substancial concordam as traduções que realizaram L. Ménard, W. Scott e o P. Festugière, e outras mais recentes como a inglesa de B. P. Copenhaver;34 como concordam igualmente no substancial o manuscrito latino do Asclépio com cuja cópia se trabalha até hoje, com o manuscrito copta do mesmo nome encontrado em 1945 com o resto da biblioteca de Nag-Hammadi, precisamente no Egito, e traduzido e anotado por P. Mahe.35 

Entretanto a relativa homogeneidade do Corpus Hermeticum se vê alterada por seu livro X. Este livro é fundamentalmente a pedra de escândalo no Poimandres. Efetivamente, para começar, alguns acreditam ter visto uma contradição nele ao fazer-se no compartimento 14 ao homem filho do Cosmo e não de Deus, quer dizer, neto do Noûs, e não seu filho, como se diz claramente no livro I, e se repete ou se faz referência a isso com o passar do Corpus. 

Isto deve se ressalvar completamente, posto que o homem do qual aqui se trata é o ser humano individual, não o Arquétipo incriado do Homem, o Anthropos ou Homem Universal ao qual se refere o 1.º livro (12 e subseqüentes até 17), e portanto é também filho do Cosmo já que sua matéria foi extraída dele, posto que é análogo ao mesmo, e embora filho de Deus de modo direto também pode ser considerado seu neto no sentido de um maior afastamento ou obnubilamento do Noûs devido a sua maior aproximação à substancialidade, ao se considerá-lo também filho do Demiurgo, e portanto partícipe da matéria do Cosmo. O mesmo acontece com a Natureza que, no primeiro livro, é vista igualmente como arquetípica e incriada, quer dizer, a Substância Universal (nesse caso o Noûs-Deus seria a primeira hipóstase, o Noûs-cosmo-demiurgo a segunda e o Homem a terceira), mas que é considerada de maneira material no livro III, 1. 

Na realidade, este livro X de que falamos, chamado às vezes X A Chave, parece obra de outra mão e seu estilo é muito mais grosseiro e abrupto que o resto como o afirma em nota W. Scott.36 Na parte 7 se diz textualmente:

Pois numerosas são as metamorfoses dessas almas: as de umas para uma sorte mais feliz, as de outras para uma sorte contrária: porque as almas reptantes passam a animais aquáticos, as almas aquáticas a animais terrestres, as almas terrestres a voláteis, as almas aéreas a homens …


O que, além de ser uma prefiguração das teorias evolucionistas, que pretendem que as espécies não são fixas, não é uma doutrina Hermética propriamente dita se a tem de uma maneira não alegórica, e não se repete ao longo desta obra, nem de outros tratados postos sob a avocação de Hermes. De todas as maneiras, no parágrafo 19 se sublinha que nenhuma alma humana pode encarnar num corpo animal. O que é definitivamente contrariado no parágrafo 8 onde se afirma que a alma do ímpio segue uma ordem involutiva:

… senão que, voltando atrás, percorre ao inverso o caminho que seguiu, que conduz até os répteis.


Pessoalmente pensamos que esta contradição num mesmo texto, a poucas páginas de onde se afirmava o oposto, foi uma das causas mais importantes da subestimação atual do Poimandres entre os estudiosos. 

Na realidade, a afirmação veemente de 19: a alma humana não reencarna de maneira animal, que contradiz a teoria evolucionista-involucionista de 7-8 é igualmente própria do hermetismo posterior ao Corpus. Nesse caso o que se descreve ali (7-8) poderia também ser uma utilização metafórica da linguagem aonde se queria dar uma visão da Alma Universal cuja energia se individualiza num ser que –análogo aos macrocosmos– tem componentes universais que correspondem a estados distintos do Ser Universal. Entretanto não se mencionam outros "reinos" onde a alma possa encarnar, como o mineral, ou melhor, no vegetal, que a simples vista está animado. No animal coincide com o dito por Porfírio a respeito de Pitágoras, em sua Vida do Pitágoras:

… era especialmente notória sua afirmação de que a alma, em primeiro lugar era imortal, e logo se transladava a outras espécies de seres vivos, … também assegurava que tudo o que de índole animada existia era necessário se considerar da mesma parentela" …


Por outra parte, tanto na obra de Porfírio, como na de Jâmblico, do mesmo título, destaca-se uma particular relação com os animais (Jâmblico XIII, 60; Porfírio 23-25). Quanto a sua lembrança de vidas passadas estes autores são unânimes em destacá-lo, e era tão óbvia sua crença que, refere-se, interrogava às pessoas sobre esse tema. Quanto a Platão, citamos aqui alguns parágrafos com os quais fecha o Timeu37:

A espécie terrestre e bestial nasceu dos que não praticavam absolutamente a filosofia nem observavam nada da natureza celeste porque já não utilizavam as revoluções que se encontram na cabeça, mas sim tinham como governantes às partes da alma que aninham no tronco. Por causa destes costumes, inclinaram os membros superiores e a cabeça para a terra, empurrados pela afinidade, e suas cabeças obtiveram formas alargadas e múltiplas, conforme tivessem sido comprimidas as revoluções de cada uma pela inatividade. Por esta razão nasceu o gênero dos quadrúpedes e do de pés múltiplos, quando deus deu mais pontos de apoio aos mais insensatos, para arrastá-los mais para a terra. Aos mais torpes entre estes, que inclinavam todo o corpo para a terra, como já não tinham nenhuma necessidade de pés os engendraram sem pés e arrastando-se sobre o chão. A quarta espécie, a aquática, nasceu dos mais carentes de inteligência e mais ignorantes; aos que, quem transformava os homens, não se consideraram nem sequer dignos de ar puro, porque eram impuros em sua alma devido à absoluta desordem, senão que os empurraram a respirar água turva e profunda em vez de ar suave e puro. Assim nasceu a raça dos peixes, dos moluscos e dos animais aquáticos em geral, que receberam os habitáculos extremos como castigo por sua extrema ignorância. Desta maneira, todos os animais, então e agora, convertem-se uns em outros e se transformam segundo a perda ou aquisição de inteligência ou demência.


Isto, da mesma forma, pode ser tomado literalmente ou de modo metafórico ou alegórico como uma imagem da degradação da alma que cai na materialidade numa descida através de diferentes espécies animais. 

Por sua parte Plotino em seu Enéadas também parece acreditar em transmigrações para o animal, poder-se-ia dizer que de modo quase literal:

… quantos viveram só pela sensação, renascem animais; … e à sanção das almas que se reencarnam em bestas, quem assiste? Alguém inferior a um demon? (III 4.2, 15-20; e 6, 15-20).


Por isso a possível leitura alegórica do Poimandres X, 7-8 no sentido de que a alma do homem participa da Alma Universal e como ela, devido à analogia macro-microcosmo, conhece estados que compartilha com o Universo, já que ambos participam de um mesmo projeto, –idéia que está presente em outras partes do Corpus– não é tampouco clara, embora isso não quer dizer que forçosamente se tenha que tomar como literais às metamorfoses hierárquicas descendentes que são descritas. O certo é que este tipo de crença era habitual, em geral, nos meios neoplatônicos e neopitagóricos onde presumivelmente se originou o Corpus Hermeticum. 

Deve-se destacar que tanto para o pensamento hermético, quanto para as doutrinas tradicionais em geral a transmigração da alma é considerada de modo vertical e associada sempre com a transmutação que esta sofre no processo Alquímico onde conhece outros estados do Ser Universal. Isto se deve à Tradição Hermética considerar sempre o estado e tempo presente como condição dessa transmutação, reflexo do Eterno Presente, onde tanto o passado como o futuro são inexistentes. Não há outra alternativa que assumir hoje o processo vital e encarná-lo sacudindo-se os indefinidos sonhos, as ilusões e os condicionamentos, e enfrentar agora mesmo a Iniciação, única e verdadeira realização do ser humano, totalmente alheia a qualquer colocação ou veleidade reencarnacionista.38

NOTAS
10 Plutarco (46-120): Vidas Paralelas e Moralia, que inclui o De Ísis e Osiris. Nesta escreve: "Conforme se diz, nas obras intituladas 'Livros de Hermes' ao tratar dos nomes sagrados se afirma que o poder que regula a circunvolução do sol é chamado Hórus pelos egípcios, e designado pelos gregos com o nome de APOLO". Isis y Osiris, 61. Ed. Glosa, Barcelona 1976, pág. 46.
11 Jâmblico (S. I), neoplatônico: "O conjunto foi completamente exposto por Hermes em seus livros." (Jamblique: Les mystères d'Egypte. Les Belles Lettres, París 1989). "Mas se propuser alguma pergunta filosófica, respondê-la-emos para ti também segundo as antigas estelas de Hermes, que já Platão e anteriormente Pitágoras tinham escrutado para constituir sua filosofia." (ibid. I, 1).
12 H. C. Puech, fala-nos de um comentário sobre o Fedro do qual é autor Hermias de Alexandria (séc. V) no qual se destaca a Hermes Trismegisto. (Ver En quête de la Gnose. I La Gnose et le temps, cap.: "Hermes trois fois incarné". Gallimard, París 1978.)
13 É muito significativo que a Apuleio (114/125?-160/170?) -De Platão e sua doutrina, Do mundo, Sobre o deus de Sócrates, As Metamorfoses ou O Asno de Ouro, fosse atribuída a paternidade do Asclépio; de fato se o considerava por um lado como um filósofo platônico, tal o fez Santo Agostinho, por outro, como um iniciado egípcio de influências "hermetizantes" e, por último, como um mago, ou melhor, um teurgo, do qual por outra parte foi acusado e teve que defender-se, o que deu lugar a sua obra Apologia, sua alegação por escrito de defesa.
14 Proclus: Sur le Premier Alcibiade de Platon, T. II, págs 253-254. Les Belles Lettres, París 1986. Texto estabelecido e traduzido por A. Ph. Segonds, quem recorda em nota um pouco antes, remetendo-se ao Platão (Rep. III 412), a comparação da alma com uma lira da qual música e ginástica são as cordas.
15 Sobre o tema das estátuas mágicas ver Raimon Arola: Las Estatuas vivas. Obelisco, Barcelona 1995.
16 Escritor latino cristão (250-325) discípulo de Arnóbio. "Trismegisto, de fato, que investigou –não sei de que modo– quase toda a verdade, descreveu com freqüência a virtude e majestade do verbo". Instituições divinas, IV 9. 3. "Pois bem, tratava-se de um homem, embora muito antigo e tão instruído em todo tipo de doutrina que seus conhecimentos em muitos temas e artes determinaram que se lhe pusesse o nome de Trismegisto. Escreveu livros e concretamente muitos deles referentes ao conhecimento de temas divinos; …". Ibid., I 6. 3-4.
17 Zósimo de Panópolis (S. III), filósofo, mago e alquimista. Cita o Crátera e outros textos em A conta final.
18 Teólogo grego doutor da Igreja (meados do séc. V). Foi patriarca de Alexandria (376-444). Em seu Contra Julianum, I 30: "Estimo também digno de memória o egípcio Hermes ao qual seus contemporâneos, como sinal de honra, concederam, diz-se, o título de três vezes grande e ao qual alguns assimilam ao legendário filho do Júpiter e Maia." (F. Bonardel, L'Hermétisme, P.U.F., Paris 1985). Também a mesma autora nos fala de que Cícero (102-43 A. C.) em sua De natura deorum (III, 22) diz: "Os egípcios lhe chamam Thoth e é com essa mesma denominação que designam o primeiro mês do ano". (Ibid).
19 Miguel Pselos (1018-1096) menciona em sua obra a Hermes Trismegisto e seus livros e presta especial atenção aos chamados Oráculos Caldeus, aos quais comenta.
20 Proclus: Théologie platonicienne. Livre I. Les Belles Lettres, París 1968.
21 Segundo Bentley Layton, em seu livro The Gnostic Scriptures (Doubleday & CO., New York 1987, intr. pág. xVI), uma das duas correntes mais importantes do pensamento de Valentin, por sua vez o mais importante dos teógonos do pensamento gnóstico, foi constituída pelos escritos Herméticos. Ver também A. Orbe S. J., Teología de San Ireneo, BAC, Madrid 1985-88, 3 vol.
22 Ver Oracles Chaldaïques, tradução, comentários e notas E. Les Places. Les Belles Lettres. París 1989. Há versão castelhana com introdução, comentário e notas do F. García Bazán (Ed. Gredos. Madrid 1991). Observe-se a analogia destes textos com alguns papéis dos Hermética com os quais compartilham fundamentalmente a mesma cosmogonia, embora ambos os ensinos se acham muito diferenciadas entre eles dado o caráter incompleto, misterioso e oracular dos textos "caldeus", mas com elementos comuns, também presentes nas gnoses, dualistas ou não, no neoplatonismo, e no cristianismo, sem nomear outras correntes orientais coincidentes –fora do Egito e Caldéia– na época alexandrina como o hinduísmo e inclusive o budismo.
23 Edição castelhana com introdução, tradução e notas de J. L. Calvo y Mª D. Sánchez. Ed. Gredos. Madrid 1987.
24 No livro citado na nota anterior, coleção de documentos dos primeiros séculos da era cristã, Hermes é chamado "fundador dos deuses", fala-nos também de um Hermes subterrâneo e se lhe chama como Trismegisto, o Deus de grande pensamento (papiro VII, 29-550); igualmente, fala-se do coração de Hermes associando-o ao "orvalho de todos os deuses" e como fundador da língua, e se lhe invoca para práticas mágicas que vão do pedido de uma iluminação ou um sonho até um encantamento para apanhar um ladrão.
25 Ver R. Guénon: "La Tumba de Hermes", trad. em Symbolos nº 17-18, 1999.
26 Ver Jean Doresse: Historia de las Religiones, dirigida por H. Ch. Puech. Tomo 6, cap. "El Hermetismo Egipcianizante". Siglo XXI, Madrid 1979.
27 Alquimia. Titus Burckhardt. Ed. Paidós, Barcelona 1994; pág. 187. [Ver también, de outra autoria, Hermès Trismégiste: La Table d'Émeraude et sa tradition alchimique. Les Belles Lettres, París, 1994, préface de D. Kahn].
28 Historia de la Filosofía Islámica, Henry Corbin. Ed. Trotta, Madrid 1994. "É impossível citar aqui os títulos das obras que figuram na tradição hermética do Islã: tratados atribuídos a Hermes, a seus discípulos (Ostanés, Zósimo, etc.), traduções…" "Não obstante, é preciso mencionar de forma particular o título de duas grandes obras herméticas árabes: 1) O Livro secreto da Criação e técnica da Natureza (sirr al-khâlika) foi elaborado sob o califa Ma'mûn (†218/833) por um muçulmano anônimo que o pôs sob a denominação de Apolônio de Tiana. É o tratado que termina com a célebre 'Tábua de Esmeralda', Tabula Smaragdina (deve se relacionar com o Livro dos tesouros, enciclopédia de ciências naturais, redigida na mesma época por Job de Edessa, médico nestoriano da corte abássida). 2) O objetivo do sábio (Ghayât al-Hakîm, erroneamente atribuído a Maslama Majrîtî, †398/1007). Este tratado contém, além de informações muito valiosas sobre as liturgias astrais dos sabeus, todo um ensinamento sobre a 'Natureza Perfeita', atribuída a Sócrates." "A visão que Hermes teve de sua Natureza Perfeita é comentada por Sohravardî, e depois dele por toda a escola ishrâqî (infra, VII), até o Mollâ Sadrâ e os discípulos de seus discípulos." "pode-se seguir o rastro da 'Natureza Perfeita' sob outros nomes: é a ela a quem busca o peregrino das epopéias místicas persas de 'Attâr; voltamo-la a encontrar na escola de Najm Kobrâ, designada como 'Testemunha do Céu' ou 'guia invisível'." "É sem dúvida graças ao hermetismo que toda uma estirpe de sábios do Islã pôde tomar consciência desse 'eu celeste', 'eu em segunda pessoa', que constitui o fim de sua peregrinação interior, quer dizer, de sua realização pessoal." (P. 125-126). O mesmo poderia afirmar-se daqueles que puderam aceder à sabedoria hermética por meio da Maçonaria e seu rito.
29 Com respeito a Sohravardî, notável metafísico islâmico Henri Corbin em outra obra, O homem e seu anjo, diz-nos: "Três grandes nomes elogiados em sua obra como profetas guiam a inspiração de Sohravardî: Hermes, Zoroastro e Platão".
30 Para a cosmogonia egípcia ver Lucie Lamy: Misterios egipcios (Ed. Debate, Madrid 1989), e Manfred Lurker: An Illustrated Dictionary of The Gods and Symbols of Ancient Egypt (Thames & Hudson, London 1995); também Sacred Science, The King of Pharaonic Theocracy, R. A. Schwaller de Lubicz. Inner Traditions International, N. York 1982, Le Calendrier Egyptien, une Oeuvre d'Eternité, Dr. A. S. von Bomhard, Periplus Publishing, London 1999, Prefácio de Jean Yoyotte; etc.
31 No Islã estes "solitários" estão diretamente vinculados com os âfrad, que estão sob o amparo de El-Khidr. Esta entidade, que está viva, pode ser associada ao profeta Elias que também permanece vivo (Elias Artista é um dos patronos da Alquimia), tal como Enoque, que foi arrebatado ao céu num carro de fogo sem passar pela morte, o qual é por sua vez o profeta Idris (=Hermes).
32 "Ouvi-me, poderosos libertadores! Concedei-me, pela compreensão dos livros divinos e dissipando a treva que me rodeia, uma luz pura e Santa a fim de que possa compreender com claridade ao Deus incorruptível e também ao homem que eu sou". Hinos, IV. Proclo.
33 "A unidade geral das doutrinas expostas nos livros herméticos permite referir-se a uma mesma escola". Hermès Trismégiste. Louis Ménard. Guy Trédaniel, Paris 1977.
34 Hermetica. Brian P. Copenhaver. University Press, Cambridge 1995. Ed. castelhana, Corpus Hermeticum y Asclepio: Siruela, Madrid 1999.
35 Pierre Mahe. Bibliothèque Copte de Nag Hammadi. 2 T. Les Presses de l'Université Laval, Quebec 1978-82. Há também tradução inglesa: The Nag Hammadi Library, J. M. Robinson (ed.). HarperCollins, N. York 1990. A lista completa dos textos herméticos desta biblioteca que J. Doresse –a quem seguimos nisto– chama de Khenoboskion, inclui vários títulos fora o Asclépio 21-29. Ver L'Evangile selon Thomas. Editions du Rocher, Paris 1988.
36 Walter Scott. Hermetica. Shamballa, Boston 1993.
37 (Timeu 91-92). Diálogos, vol. VI. Gredos, Madrid 1992.
38 Ver  para este tema: René Guénon. L'Erreur Spirite, cap. "La réincarnation". Ed. Traditionnelles, Paris 1991, e Ananda K. Coomaraswamy, What is Civilization? caps. 6, 7 e 8.