Frontispício da primeira edição em alemão
do Corpus Hermeticum
Frontispício da primeira edição em alemão
do Corpus Hermeticum, Hamburgo 1706
HERMETISMO E MAÇONARIA 
Doutrina, História, Atualidade
Federico González
 
I. OS LIVROS HERMÉTICOS (3)

Cabe-nos agora mencionar certas idéias e seguir desenvolvendo outras ligadas à Tradição Hermética. Para isso, acreditamos conveniente transcrever aqui algumas delas, incluídas e comentadas por L. Ménard na introdução de sua tradução do Corpus Hermeticum; por sua vez, estas frases citadas por Ménard foram tiradas de M. Vacherot: Histoire critique de l'École d'Alexandrie. "Deus é concebido como um princípio superior à inteligência, à alma, a tudo aquilo do qual é causa. O bem não é um de seus atributos, é sua própria natureza; Deus é o bem, como o bem é Deus. É o não-ser, enquanto ele é superior ao ser. Deus produz tudo o que é e contém tudo o que ainda não é. Absolutamente invisível em si, é o princípio de toda luz. A inteligência não é Deus, é somente de Deus e em Deus, assim como a razão está na inteligência, a alma na razão, a vida na alma, o corpo na vida. A inteligência é distinta e inseparável de Deus como a luz de sua fogueira; é tal como a alma o ato de Deus, sua essência, se tiver uma. Para Deus, produzir e viver são uma só e mesma coisa. Finalmente, o caráter próprio da natureza divina é que nada do que convém aos outros seres pode lhe ser atribuído; ele é a substância de todos sem ser coisa alguma. Deste modo se reconhece ao pai de todos os seres, Deus. É o esplendor do bem o que ilumina a inteligência, depois o homem todo, e o converte numa essência verdadeiramente divina. Deus é a via universal, o todo do qual os seres individuais não são senão partes; é o princípio e o fim, o centro e a circunferência, a base de todas as coisas, a fonte superabundante, a alma que vivifica, a virtude que produz, a inteligência que vê, o espírito que inspira. Deus é tudo, tudo está cheio dele; não há nada no universo que não seja Deus. Todos os nomes lhe convêm enquanto Pai do universo, mas, por ser o pai de todas as coisas, nenhum nome é seu nome próprio. O um é o tudo, o tudo é o um; unidade e totalidade são termos sinônimos em Deus." 

Acreditamos que estas idéias podem ilustrar sobre o pensamento que subjaz e forma o Corpus Hermeticum. De fato, a cosmogonia que abre o Poimandres, embora não suficientemente clara (não menos clara, porém, que muitas outras, a começar pela bíblica), é um bom princípio não para sistematizar, mas para ir considerando os textos do Corpus, que  iluminarão estas imagens ao longo tanto do restante do Poimandres, quanto no Asclépio e nos extratos de Estobeu, sem esquecer nunca que eles constituem uma Revelação, quer dizer, que eles são para quem os transmitem e para os discípulos a que estavam –e estão– destinados. Isso permite que seja seguido seu riquíssimo e variado discurso como um despertador de imagens e intuições e, sobretudo, como uma via de acesso ao Conhecimento, se nos deixamos levar por seu desenvolvimento, que inclui vários pontos de vista, interrupções, reiterações, meditações e vazios, tal qual o da própria vida, mas que encontra sua unidade no tema central de todos eles, a divindade, sua hipóstase e o modelo arquetípico criacional. Isto se encontra também em relação aos microcosmos aos quais estes ensinos salvíficos estão destinados, já que o ser humano individual por sua participação direta no Noûs é o objeto e, simultaneamente, o sujeito da Revelação. 

Tudo isso está o suficientemente claro –e maravilhosamente expresso– tanto no Poimandres como no Asclépio e nos Extratos do Estobeu; por isso muitas explicações e comentários sobram, já que os livros do Corpus Hermeticum constituem uma das teogonias e cosmogonias mais transparentes e iluminadoras do mundo inteiro, muito mais simples e prática que outras gnoses, com as quais, por outra parte, compartilha elementos idênticos expressos de maneira diversa, ou análoga, embora com diferenças de detalhes. Entretanto, acreditamos que se deve insistir sobre um assunto, em especial tendo em conta àqueles que se educaram numa Tradição que, como a dos escritos do Corpus Hermeticum, repete algumas vezes a unicidade do Uno e Só. Estamo-nos referindo à idéia do Demiurgo, presente também em Platão e outros autores antigos, não suficientemente explicada e mal entendida. Efetivamente a idéia de uma segunda pessoa na divindade, que é por outra parte a que cria ao mundo, pareceria se contradizer com o monoteísmo, acaso se nos ativéssemos a uma interpretação literal em que nem sequer as religiões caíram (lembre-se do dogma da Santíssima Trindade), quer dizer, se pensarmos que há um segundo Deus, (ou seja, que este não é Uno), ao qual, em nossa ignorância, ainda podemos valorizar mais que o Primeiro e Único, dada sua atividade criadora, já que os contemporâneos costumamos apreciar mais  Marta do que Maria, à ação mais que à contemplação. Mas não são dois deuses, (ou três entidades diferentes com a aparição do homem), senão um só Ser (que ainda tem acima o Não-Ser, o Ain-Soph, da cabala) que emanando as intimidades de si mesmo dá forma ao Universo e ao homem, começando pelas Idéias Arquetípicas Incriadas, quer dizer, por sua mente divina que concebe o plano do mundo e sua arquitetura, prosseguindo com a criação do Universo executada pelo artesão divino, forma do Noûs-Deus chamada agora Noûs-Demiurgo. A todos os efeitos deve se considerar que esta última entidade é sexuada por ter sido fragmentada a unidade primitiva em duas partes, o que a faz, acima de tudo, de natureza dual, e portanto sujeita ao devir do bom-mau (algumas gnoses fazem um paredro com Demiurgo-Sofia, ou lhes outorgam a própria segunda hipóstase em seus aspectos macho e fêmea) já que, efetivamente, tudo o que está vivo, por isso mesmo, está condenado à corrupção e à morte.38

Existem pois duas formas de conceber o mundo e o Demiurgo, como expressamos mais atrás, contudo ambas não se contradizem mas se conjugam, complementando-se. Uma delas é a de se extasiar com o criado e cantar suas maravilhas, expressão da totalidade do possível, testemunho da Grandeza, Inteligência e Sabedoria de seu criador que permitiu que se lhe conheça pela manifestação de sua própria Obra, permanentemente viva e mutável, que inclui o homem, e tudo o que este é enquanto miniatura do Cosmo. Mas há outra forma igualmente válida de encarar este fato: a de se considerar, ou melhor, "vivenciar" ao Deus criacional ou Demiurgo, como uma entidade "má" ou terrível, pelo motivo de não ser o Primeiro Deus, o motor imóvel, mas sim uma forma "menor" do Ser, neste caso "criada" e portanto extremamente relativa a seu lado. A isso devem ser acrescentados aspectos negativos inerentes a qualquer criação que, como já assinalamos, leva o selo do perecível e ao mesmo tempo tem nomes como "Glória", "Conhecimento", "Beleza" e "Graça", para não mencionar senão alguns de seus atributos; igualmente a fealdade, a enfermidade, a velhice, e sobretudo, no caso do ser humano, a ignorância, estados que coexistem simultaneamente tanto no Noûs-Demiurgo como no homem feito a sua imagem e semelhança e que não têm cabimento na Suprema Identidade, o Noûs-Deus, perfeitamente inatingível com respeito às permanentes mutações do Deus cósmico, embora ainda sujeito à Primeira determinação com relação ao Não-Ser. 

A tudo isto deve se adicionar a possibilidade de uma ascensão pelas esferas cósmicas que remontam o homem ao seu Arquétipo (o Homem Verdadeiro) e ao seu Criador e, através Deste, à Origem de toda emanação, ao Um-Só39 e, por seu intermédio, ao mistério daquilo que só pode ser enunciado racionalmente em termos negativos. Na realidade, esta última possibilidade, a da divinização do homem, é específica do Corpus Hermeticum que atribui à compreensão de sua gnose um caráter revelador emanado do próprio Noûs, ou Intelecto divino (o raio buddhi da Tradição hindu), que se produz no ser humano coetaneamente com sua abertura à compreensão, do mesmo modo que o tempo é simultâneo ao Cosmo e está nele contido, conforme o indica o próprio Corpus.40

Isto é importante posto que os Hermetica em geral e concretamente os livros do Corpus Hermeticum testemunham um meio salvífico, quanto ao Conhecimento que eles revelam e que é próprio da Tradição Hermética e daqueles Adeptos anteriores e posteriores que se colocaram sob o patrocínio e a avocação de Hermes Trismegisto, ou que expressam de uma maneira ou de outra o pensamento deste movimento ou escola no histórico, seja de maneira "popular" ou "sapiencial" posto que meta-historicamente o modelo do Universo é válido para todo tempo e lugar e pode ser percebido mediante distintos pontos de vista e com diferentes métodos, ainda numa mesma Iniciação, sem contar suas transformações secundárias, devidas a diversos fatores, mas face às quais se observa sua essência, o oculto sob distintas roupagens ou formas de diferentes gnoses, que deixam transparecer que todas elas são adequações de uma só Tradição Primordial.  

A primeira edição traduzida do manuscrito grego do C. H. ao latim, é de Marsílio Ficino e foi publicada em 1471; trata-se dos primeiros quatorze livros do Poimandres; esta alcançou um êxito tão grande que, praticamente de imediato, efetuaram-se 32 edições da obra. Daí por diante, começaram a se prodigalizar as traduções e seguiram as edições. F. Patrizzi editou e comentou o Asclépio e, pouco a pouco, foram aparecendo o restante dos livros. Em 1491 Lefèvre d'Étaples começa a traduzi-lo ao francês; nesta língua aparece uma edição em 1549, em inglês em 1650 e em alemão em 1706. 

Coube pois ao Renascimento Italiano e à cidade da Florença, especificamente a sua Academia, ser o foco, no momento e época propícios, para difundir com grande auge e prestígio esta literatura hermética que, para se dizer assim, "oficializa-se" ao se entregar à luz pública, e se incorpora –em parte devido às novas técnicas de gravura e da imprensa– de modo decidido ao pensamento ocidental onde permanecerá, com maior ou menor fortuna quantitativa até o presente, revestindo estruturas tão dissímeis como a alquimia e a cabala (cultivada por judeus e cristãos), a astrologia e a aritmosofia, embora seus ensinos e pontos de vista possam se assimilar e se conjugar com outras tradições, permanecendo em muitos aspectos como manifestamente idênticos, tais quais seus símbolos fundamentais. Isto faz com que esta Tradição e seus livros tenham chegado até nós intactos e que o Hermetismo e a influência espiritual que representa tivessem Adeptos até nossos dias, que realizam seus trabalhos inspirados na doutrina que emana de todo um tipo de literatura cosmogônica reveladora, que manteve viva esta Tradição até hoje, da mesma forma que tampouco morreu Hermes Trismegisto, identificado com Enoch, o qual ainda está vivo, além do movimento e da sucessão. 

Na Idade Média, igualmente foram conhecidos os textos herméticos e seu pensamento, não somente pela escola do Chartres, ou por Santo Agostinho, mas também de modo indireto por meio de diversos escritos com os quais guarda estreitos parentescos, como são os textos dos neoplatônicos ou neopitagóricos em geral, ou pelo conduto dos Oráculos Caldeus e dos livros de receitas, e fórmulas simpáticas ou correspondências, como o Lapidário de Alfonso X, o Sábio (1221-1284: Livros do Saber de Astronomia) e os extraordinários livros de Alquimia, Astrologia-astronomia e sabedoria em geral, que corriam, traduzidos do hebreu e do árabe em sua corte, efetuados pela escola que ele fundou e que tinha sua sede na Toledo da época. A versão cristã de muitos dos ensinos herméticos está presente nas obras do Pseudo-Dionísio Areopagita: Teologia Mística, Epístolas, Dos Nomes Divinos, Da Hierarquia Celeste. Este dado adquire particular relevância caso se leve em conta o papel que teve a "teologia" de Dionísio na Cristandade, já que ela influenciou diretamente  Boecio (470?-525?): Sobre a consolação da filosofia, Opúsculos teológicos; da mesma forma a João Scoto Erígena (810?-870?), que traduziu o Comentário sobre o Pseudo-Dionísio atribuído a Máximo, o Confessor; outra obra sua é Sobre a predestinação e a mais importante Sobre a divisão da natureza; também sobre Eckhardt (1260?-1327): Opus tripartitum –embora muito pouco se conserva dela–, Tratados, Sermões; também em Suso (1293-1366): O livro da Sabedoria eterna, O livro da Verdade, A Vida do Servente; idem com o anônimo inglês (S. XIV) de A Nuvem do Não-saber; e finalmente em Nicolas de Cusa (1401-1464), autor de Sobre a douta ignorância –onde nos apresenta a tríade Deus-homem-mundo–, Sobre as conjeturas, Sobre a Gênese, Idiota, Da não alteridade, Sobre a caça da sabedoria, De quaerendo deo, e que parece conhecer bem a Hermes Trismegisto ao qual cita corretamente em suas idéias nos caps. XXIV e XXV41 (livro 1) de A douta ignorância; igualmente devemos mencionar na Espanha a Arnaldo de Vilanova, médico, astrólogo e alquimista catalão (H. 1235 ou 1250-1311 ou 1313): Interpretatio de visionibus in somniis dominorum Jacobi, Epistola super alchymia, Confessiò de Barcelona; e Raimundo Llull (1235-1316): Tractatus novus de astronomia, Liber principiorum medicinae, De ars combinatoria, Ars magna, Liber contemplationis, Liber de secretis naturae seu de quinta essentia, Liber de ascensu et descensu intellectus, Arbor scientiae, Ars generalis ultima, etc.; e na Inglaterra Rogelio Bacon (1210/4?-1294): Opus majus, Opus minus, Opus tertium, Espelho de Alquimia; e Robert Grossetteste (1175-1253), um dos grandes pilares de Oxford e bispo de Lincoln, autor de uma Suma de filosofia; chegando sua influência até os começos da escolástica, inclusive a Alberto Magno e Tomás de Aquino, e a que por sua vez exerceram estes autores não só durante a Idade Média, mas também em toda a Civilização Ocidental, em teólogos e filósofos que tiveram a fortuna de conhecer estas ideas. 

Efetivamente, a crítica estabeleceu que as obras de Dionísio e seu fundamento platônico foram escritas aproximadamente no século V de nossa era e as relacionam com o Platão, Proclo e Damascio, embora sua autoria se atribui a alguém que confusamente se diz discípulo de São Paulo, apesar da defasagem de tempo manifesto, embora não se deva rechaçar uma filiação simbólica, o que é evidente no nome Hieroteo, suposto mestre do suposto Areopagita. Também essa mesma crítica comparou a Proclo e a fragmentos dos Oráculos Caldeus com os capítulos I, II e III da Teologia Mística do Dionísio. Por nossa parte pudemos constatar várias frases ou textos que se duplicam em ambos, algum dos quais assinalamos aqui e na tradução dos textos, sem falar do ambiente, da atmosfera que ambos compartilham, e a identidade de conceitos: o Corpus em versão Grego-Egípcia, ou seja, pagã, e a obra do Dionísio, de maneira cristã.

 
NOTAS
38 A tríade Deus-Cosmo-Homem, deve também ser vista no diagrama sephirótico da Árvore da Vida, modelo do Universo da Cabala hebraica, como se correspondendo respectivamente com os mundos do Atsiluth, de Beriyah e de Yetsirah: o mundo intermediário (dividido por sua vez em psiqué superior e inferior) que contém os sephiroth "de construção" cósmica, também chamado Adam Protoplastos (e aos 7 deuses planetários que lhes correspondem) e finalmente com o de Asiyah, mundo criado impermanente, sensível e material, permanentemente vivo, formado pela terra e pelo homem. Todo o diagrama cósmico da Árvore da Vida cabalística, ou seja, o descenso e a ascensão por meio das esferas, pode se transpor ao ser humano em virtude da correspondência macrocosmo–microcosmo; nesse caso, todos os mundos estariam igualmente contidos no Homem Universal (do qual o homem criado é uma imagem), o Anthropos hermético, ou Homem Arquetípico chamado na Cabala Adam Kadmon que, ou se corresponde com as três primeiras sephirot, o Macroprosopos, ou com a totalidade das dez Numerações (Macroprosopos e Microprosopos), ou seja, o conjunto do cosmo em seus três (ou quatro) níveis. Na cabala luriânica se chamava Adam Belliya' ao homem "material", ao indivíduo hylico ou somático, designado assim de uma maneira um tanto depreciativa como correspondente ao plano de Asiyah, quer dizer, ao homem "corrente" que não recebeu em si os ophanim, ou faíscas divinas imprescindíveis para a aparição do Homem Novo, embrião do Homem Verdadeiro. Desde outro ponto de vista esta divisão tripartida do diagrama se corresponde igualmente com a tríade Espírito-alma-corpo, estando a alma, mundo intermediário, dividida em duas partes como já se assinalou, superior e inferior, segundo sua proximidade com o Espírito ou o corpo. Também podem associar os planos ou mundos cabalísticos com os elementos arquetípicos, incriados, que em virtude da "queda" vão sofrendo um processo de densificação, fixação, cristalização e adiafanamento, relacionando o plano de Atsiluth (Emanações) com o fogo, o de Beriyah (criação) com o ar, Yetsirah (formação) com a água, e Asiyah (obra) com a terra. Note-se que segundo o Corpus o homem terreno nasce de água e terra com a assistência do ar (fôlego) e o fogo, presididos pelo éter, principio supracósmico, imagem do Ain-soph cabalístico.
39 A solidão é a via à unidade por identificação com a mesma.
40 Também Dionísio Areopagita em seu Dos Nomes Divinos nos diz: "Por fim, quando pela graça divina, as criaturas, segundo sua capacidade respectiva, transformam-se em deuses, parece, e se diz efetivamente, que há pluralidade de deuses diversos; e entretanto, o Deus princípio e superior permanece essencialmente sozinho, unido a ele mesmo, indiviso nas coisas divisíveis, puro de toda mescla e constantemente simples nas coisas múltiplas" (cap. 2).
41 "Hermes (Trismegisto) atribui duplo sexo a todas as coisas, tanto aos animais como não animais, pelo qual a causa de tudo, quer dizer, Deus, reúne em si o sexo masculino e o feminino". Cap. XXV: "Os gentis chamavam deus de diferentes maneiras com relação às criaturas". La docta ignorancia. Ed. Aguilar, Madrid 1981.